Misteriosa


Por favor, cliquem no player acima para escutar a canção Die Walküre e aguardem alguns segundos para ler o texto enquanto a escutam. Obrigada!

Parte I


Ela usava uma capa preta, comprida, que ia até o chão e cobria seu corpo todo. Escondia seus contornos. O capuz estava sempre sobre a cabeça abaixada. O teatro dourado vinha abaixo com as óperas que ela cantava. Sempre com a capa, sempre com contornos abstratos, sempre misteriosa. Ela o fez durante anos, e nunca, eu repito, nunca, houve um lugar vazio, sequer, no enorme auditório. E nunca houve uma pessoa, homem ou mulher, que deixasse de derramar lágrimas com a voz que parecia penetrar as almas de todos. Ao final de cada apresentação, em vez de se curvar, ela ia embora. E as pessoas batiam palmas para um palco vazio.
Em uma dessas noites, com o auditório lotado, em um dos breves momentos de silêncio entre as notas, alguém lhe pediu que levantasse a cabeça e tirasse o capuz; ela continuou cantando, como se não houvessem dito nada. E as pessoas choraram, e ela levantava os braços, andava pelo palco, mas ninguém nunca vira nem sequer a cor de sua pele. A surpresa de todos foi quando, ao final da performance, em vez de ir embora, ela se curvou. E, ao levantar, puxou o capuz para que a platéia pudesse ver, de relance, seu rosto.
Alguns levantaram e foram embora, outros levantaram e aplaudiram, mas não sobrou ninguém que estivesse sentado. Todos estavam perplexos com a máscara de porcelana branca da artista e com as mãos, exatamente da cor da máscara, que contrastavam com a capa preta. Era incrível como ela parecia estar perfeitamente preparada para ser misteriosa com ou sem capuz. Às vezes, o mistério é a natureza das pessoas.

Parte II


Ela foi apelidada de Misteriosa, depois daquela noite. E ganhou mais fama, também; além de todos os lugares ocupados, como de costume, o teatro dourado agora tinha multidões à porta, querendo, a todo custo, ver, mais uma vez, a máscara. Mas nunca mais aquilo se repetiu. Misteriosa entrava, se apresentava e saía. E a multidão continuava batendo palmas para o palco vazio, dia após dia.
Em outra dessas noites, ela entrou e entoou uma nova canção. Não era o que estava no setlist, não era o combinado, mas todos ficaram boquiabertos. As portas, lá fora, se abriram, e a multidão entrou e assistiu em pé. A música chamava-se Canção da Despedida, lembrei-me depois. Era uma melodia dolorida, intensa, cheia de pesar. Ela caminhava pelo palco, enquanto cantava, amargamente, e as pessoas choravam. Ouvia-se a música e os soluços.
O fato curioso foi que aquela apresentação durou até o dia amanhecer, ininterruptamente. E, no fim, Misteriosa ficou parada no palco, sentindo as palmas. Esperou-se que ela mostrasse a máscara de novo, mas nada aconteceu. Quando o barulho cessou, ela foi embora. E passou direto, em vez de ir para o camarim, ou para qualquer outro lugar, ela dirigiu-se à saída.
E o teatro silenciou-se durante as 47 noites que se seguiram.

Parte III


"Os lucros do Teatro Dourado diminuíram em quase 200% desde a saída de Misteriosa" era a manchete do jornal daquele dia. Ela nunca mais aparecera, de fato, e o teatro estava acinzentado. Sobravam lugares. Todos descontaram em mim, não sei por que motivo, mas eu já havia superado aquela fase. Misteriosa parecia ter aparecido como um fantasma, e fora embora tão repentinamente quanto havia chegado, e, enquanto todas as outras pessoas sofriam pela decadência do teatro, eu já aceitara o fato de que ela não voltaria.
Era uma noite de lua minguante e eu resolvi ir a um novo bar. Sentei-me no balcão e pedi uma vodca.
E quando me dei conta, já estava nos braços de alguém. Era embriagante, perfumada, confortável. Tinha uma voz baixa e rouca, e cabelos macios e escuros. Usava roupas claras, leves e folgadas, de modo que escondia os contornos do próprio corpo. Não me lembro como conheci Valquíria, mas a amei no instante em que a vi. E tornei-a minha quando vi o céu inteiro em seus olhos. Fomos para a casa dela, juntos. Um lugar minúsculo, aconchegante, arrumado. Cama de solteiro, lençóis vermelhos, parede branca, abajur alaranjado. Cortinas vermelhas. Armário e piso de madeira marrom. Tapete redondo, laranja, desbotado. Ela me empurrou até a cama, que pareceu incrivelmente grande. Era tão intensa. Deixei-me levar.
E estávamos abraçados, assistindo o sol nascer, lilás, púrpura e alaranjado. Ela cantava intensamente em meu ouvido uma música chamada "Die Walküre", enquanto tamborilava as unhas vermelhas na mesa de cabeceira.
Quando levantei-me para ir embora, ela disse que guardara minhas roupas no armário. Quando o abri, vi uma única peça de roupa: uma capa preta. E a última coisa da qual me lembro são as palavras dela:
- Sabe o que significa "Valquíria"?
- Não.
- "Aquela que escolhe os que vão morrer".

4 comentários: