domingo, 2 de agosto de 2015

Quem você é

Escrever é um trabalho de lavagem da alma. Com as palavras, você tem o poder de convencer o cético, educar o leigo, cativar a todos. Ao mesmo tempo, porém, a escrita pode se virar contra o escritor e se tornar um fado, uma angústia, um sofrimento. É que muita gente não entende como se dá o processo de amar as palavras - e que escrever nada mais é do que interpretar a si mesmo.
A ideia brota como uma plantinha regada e depois toma formas variáveis como fumaça de incenso. Então, ela passa a ser uma grande árvore, talvez... Talvez uma acácia, enorme, majestosa. O largo tronco é a ideia principal. Os muitos galhos são os possíveis caminhos que as palavras podem seguir. Depois de decidir por onde conduzir o texto, ele perde as variáveis. Nesse ponto, veja a ideia como se estivesse vendo um filme. Ela precisa passar na sua cabeça em todos os detalhes sobre os quais você pensou.
Quando se escreve a ideia - atente aqui à minha intrínseca sugestão de só fazê-lo depois de ter todo o texto pronto na cabeça, e digo isso porque, na fase de árvore, é muito fácil se perder nos galhos e depois olhar para um texto que não desenvolveu todo o seu potencial - ela passa a ser um diamante bruto. Diamantes brutos podem ser valiosos, mas ainda não o são. São opacos quando retirados da terra como as ideias quando retiradas da sua mente.
O seu texto, depois do ponto final, precisa ser lido e imaginado várias vezes antes de estar pronto. Essa parte é como escolher feijões: exige atenção e paciência.
Lapidar o diamante, ao pé da letra, significa reduzir sua rugosidade, mas o processo exige que se saiba onde ele pode ser alterado. Assim acontece com o seu texto, que precisa ficar lisinho, agradável, e com você, que precisa ter todo o cuidado do mundo para não lapidá-lo no lugar errado.
Para escrever, além, claro, de todas as regras e dicas que se aprende na escola, existe uma condição sine qua non: ler. Para desenvolver o faro das ideias boas, aguçar a sensibilidade às palavras, aprender a lapidar textos com maestria, é preciso ler. É uma tarefa de humanidade aprender para si a arte que transformou a pré-história em História e tornou possível acumular conhecimento infinitamente.
Por fim, batize seu texto. Conheça-o profundamente e escolha um título que sintetize a ideia principal, mas que, ao mesmo tempo, não a entregue (saber o final do filme antes de assisti-lo estraga tudo, não é?), para instigar curiosidade no seu leitor. Escolha o nome do seu texto com o cuidado que você escolheria o nome dos seus filhos. É um caminho sem volta.
No fim das contas, escrever exige compreensão. As ideias são fugazes, a inspiração nem sempre vem quando você chama, as palavras podem trair. Porém, uma vez entendida a arte, olhar para o texto pronto e lapidado, galanteador, convincente e poderoso, forte como um diamante, brilhante sob qualquer ângulo, causa uma certa pompa. Quem se impressiona com suas palavras, no fundo está admirando quem você é.

sábado, 1 de agosto de 2015

Uma comprida história

É um dia de sol na São Paulo que é lar de mais de 11 milhões de pessoas. Olhando mais de perto, encontramos uma Helô - que costuma ser serelepe e radiante - triste e confusa a ponto de esbarrar em várias pessoas na rua por desatenção.
Depois de finalmente chegar na estação certa (tendo errado duas vezes a entrada e ainda tentado embarcar no metrô com o bilhete do trem), ela se senta em uma cadeira e chora em silêncio para o celular. 
Para sua surpresa, depois de alguns soluços, recebe um cutucão delicado no ombro.
- Desculpe. Estou te vendo muito triste. Queria dizer que se você precisar conversar estou aqui.
(É importante salientar que ela não conhecia esse homem.)
- Desculpe, não me sinto à vontade para chorar minhas dores a um estranho.. Mas obrigada.
Após mais um tempo de angústia, foi interrompida de novo.
A tristeza de Helô encontrou conforto para transbordar nessas palavras. Assim, ela contou ao estranho como se deram todos os seus problemas e tudo o que parecia ser importante para que ele pudesse tentar ajudá-la. Por coincidência, os dois desceram na mesma estação do metrô e tiraram mais alguns minutos para essa sessão terapêutica. Quando ela conseguiu parar de chorar, ganhou um perfumado abraço, agradeceu e cada um pôde seguir seu caminho.
Todas as noites que se seguiram trouxeram a Helô a curiosidade de saber o que faria um anjo como aquele estranho se interessar em ouvir uma mulher se queixar da vida (um homem! Com vontade de ouvir uma mulher se queixar da vida!) sem perguntar detalhes que um sequestrador perguntaria caso quisesse feri-la posteriormente. Sem julgar, sem banalizar, ouvindo atentamente e tentando ajudar. E cada dia mais, ela sentia vontade de saber algo sobre ele, de fazer dele algo mais além do estranho do metrô. Porém, em uma cidade tão grande, quais as chances de rever uma pessoa ao acaso?
As semanas se passaram e se tornaram meses.
E agora vamos para uma São Paulo de chuva, onde, a pé, anda o sem sorte Eduardo, que esqueceu de sacar dinheiro e não conseguiu comprar capa de chuva com cartão de crédito. Além disso, ele está atrasado para o trabalho, não consegue pegar um táxi porque ninguém quer levar um homem ensopado e sua mochila não é impermeável - e guarda um computador.
Eduardo entra na primeira cafeteria que vê, para se proteger da chuva, se esquentar com um café e tentar secar o computador. Senta em uma mesinha no canto, abaixa a cabeça e massageia as têmporas.
- Acredito que de todas as pessoas para as quais poderíamos chorar as nossas dores, uma estranha disposta seja a melhor. Vou te escutar, te acalmar e depois nunca mais vamos nos ver.
Dessa vez olhamos para uma Helô decidida a fazer da última frase uma mentira, um Eduardo disposto a aceitar e uma comprida história começando.