sábado, 31 de dezembro de 2011

Para 2012




É de praxe que, no final de cada ano, a gente olhe pra trás e filosofe um pouquinho sobre como foi, pra gente, o que passou. O que a gente fez, o que deixou de fazer, do que se arrepende e do que se orgulha.
Esse ano de 2011, pra mim, foi como se fossem dois anos. O primeiro, eu me lembro de ter começado chorando. Não foi um jeito muito bom de começar o ano. Chorei bastante no primeiro ano de 2011. E aí me desfiz do que me fazia chorar. Chorei por isso também, mas há males que vêm para o bem da gente. Aí, depois, comecei um outro ano. Do zero. Resolvi mudar tudo em relação a mim, relaxar e contar com meus amigos. Foi uma fase em que eu só me preocupava comigo, e pronto. Daí veio a capacidade de me preocupar com as outras pessoas também. E de recomeçar, quando chegou a hora. Só que, dessa vez, corrigindo os erros passados. Cuidando pra que tudo fosse diferente. E, até agora, consegui; meu segundo ano de 2011 foi maravilhoso, cheio de sorrisos e com cheirinho de vitória.
Na escola, 2011 foi um ano perdido. Não vou nem falar sobre isso, pra não me estressar.
Dizem que, quando o ano passa rápido, é porque a gente não fez nada, e que, quando ele passa devagar, é porque deu tempo de fazer muita coisa. Acho que é o contrário. Esse ano passou tão rápido, que alguns dias pareciam durar minutos. É porque me diverti muito. Apesar dos apesares, desde 2009, venho notando que os anos estão melhorando, então tenho muitas esperanças pra 2012. Tenho medo do futuro, mas também fico ansiosa pra que ele aconteça.
Einstein dizia que quanto mais a gente se diverte, mais rápido o ano parece passar. Tomara que 2012 passe voando!

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Ensaio Sobre Ele

Quando se trabalha em uma biblioteca, aprende-se a cochichar tudo. Em meus primeiros meses de trabalho, imaginei que aos longos dos anos ia-se perdendo a voz aos poucos e ao aposentar-nos, a voz teria sumido completamente.
Eu estava guardando livros quando dona Gertrudes cochichou para mim: "mas olha que moço guapo que acabou de entrar". Veja bem, o gosto de dona Gertrudes por homens é duvidoso e varia com a lua, por isso nem me dei o trabalho de olhar. Terminei meu serviço e voltei para o balcão. O tal moço ainda andava por lá escolhendo livros. Dona Gertrudes tinha razão.
O moço guapo era alto, uma tez morena, cabelos negros, uma tatuagem no braço direito escondida pela camisa xadrez, tinha barba por fazer e olheiras que pareciam velhas amigas dele. Olhei no livro de registro tentando adivinhar qual era o seu nome. Melhor deixar pra lá. O moço guapo não era pra mim.
Aquela talvez tenha sido a tarde em que mais guardei livros. Devo ter posto em dia o serviço atrasado de 4 meses.
Ocupo-me ao máximo para não fixar minha atenção em desconhecidos que me fascinam. Foi assim que só lembrei do moço guapo quando cheguei em casa.
Os dias correram normalmente e algumas vezes o moço guapo aparecia por lá. Ele tinha um gosto variado na leitura. Havia o tempo intenso de Edgar A. Poe, ou Balzac, ou Octaviano Paz, Chico Buarque, Frederico Garcia Lorca e tantos outros que eu invejava seu tempo livre pra ler todos aqueles livros.
Algumas vezes o prefeito usava o auditório ao lado para coquetéis e erámos sempre convidadas. A primeira pessoa que eu cumprimentava era o garçom. Um bom camarada. E para minha surpresa, o garçom dessa vez era o moço guapo. Não o reconheci, então comecei minha conversa de praxe:
- Oi, amigo. Vai uma ajuda aí?
Ele sorriu e disse:
- Além de bibliotecária, fazes bico de garçonete?
Quase solto o codinome que eu e Gertrudes usavamos pra falar dele na hora do almoço. Pensei em mil planos de fuga, tive plena certeza que estava parecendo um pimentão vermelho e minhas mãos começaram a suar. Quando dei por mim ele estava estentendo um avental pra mim.
Se existir uma Sociedade das Garçonetes Unidas, com certeza elas irão odiar até a minha vigésima geração. Devo ter sido a pior garçonete de todos os tempos.
Mas nada disso importa, porque, no fim da noite, ele me deu uma flor - um cravo - e um beijo na testa, e aquilo valeu por tudo. O moço guapo tinha um perfume que o deixava simplesmente irresistível.
Ele continuou voltando, de tempos em tempos, e os dias continuaram correndo, mas, dessa vez, muito mais devagar. Eu passei a me arrumar como uma dondoca, na intenção de que ele me notasse.
E, como quem espera, sempre alcança, ele encostou no balcão para levar um Octaviano Paz para casa, e disse que eu estava muito bonita. Essas palavras foram seguidas de um silêncio incômodo, em que ele aproveitou para me notar mais um pouco. E eu corei. Ele sorriu e foi embora.
O tempo passava, assim, ele me notava de vez em quando, levava uns livros, trazia outros, doava alguns. Tudo em relação a ele era meio abstrato - menos seus músculos.
Um dia, em vez dos escritores que costumava levar, veio dizer que ia levar um Caio Fernando Abreu. E que, a propósito, eu estava especialmente linda. Estonteante. Corei instantaneamente. Anotei o livro e ele foi embora. Naquele mesmo dia, eu resolvi chegar mais tarde em casa e passar numa cafeteria, antes, para tomar um expresso.
Reclusa, com um livro na mão, eu me esquecia do resto do mundo. E nada mais existia. Como diria Clarice Lispector, eu não era mais uma menina com um livro, e sim, uma mulher com seu amante. Nem percebi quando a cadeira branca ao meu lado foi puxada e o moço guapo se sentou. Ao meu lado. E, de novo, eu estava parecendo um pimentão vermelho e minhas mãos suavam, enquanto eu procurava, na minha mente, desculpas para levantar e ir embora.
- Não precisa ficar com vergonha, eu só quero compartilhar o momento do café.
Eu sorri e a conversa fluiu por causa da segurança que ele me passou. Olhava nos meus olhos. E, no final, fui proibida de pagar a conta. E ele pediu para me levar em casa. Andamos juntos, e, quando parei e disse "é aqui", ele ficou perplexo.
- Você mora aqui?
- Moro.. Por que?
- É que.. Eu moro aqui também!
- Ótimo, subimos juntos - A essa altura, eu estava completamente relaxada e sem medo de arriscar umas indiretas - A propósito, como é o seu nome?
E, antes de me beijar, ele parafraseou Caio Fernando:
- Meu nome é Lucas Lourenço. Moro no segundo andar, mas nunca encontrei você na escada..

Essa é uma crônica compartilhada com a Ágda Santos. Ela escreve até a parte que tem o símbolo e o final é meu.



Texto Sem Título

esse é um texto sem título sem forma sem cor sem opinião porque
nem tudo na vida precisa ser sobre alguma coisa né
tem coisas que podem simplesmente ser abstratas e não incomodar
ninguém
é um texto que não muda nada na vida de quem ler
e nem de quem escreve ele só está
aqui porque a autora tem prazer em escrever ele não é dividido em parágrafos
e nem pontuado e ainda assim é
um texto porque ser um texto não quer dizer que
precisa ter métrica perfeita e nem dizer alguma
coisa um texto é só um amontoado de palavras em algum idioma e se você entende
é válido e pronto

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Diferença


Ela havia bebido demais. Eu a coloquei em meu carro e fomos, juntos, em direção à casa onde nos instalaríamos pelo próximo período indeterminado de tempo. Entrei com o carro na garagem, para que nenhum vizinho me visse puxando uma garota desacordada para dentro. Descemos as escadas e eu a coloquei no colchão onde ela ficaria. Fechei a porta e coloquei o armário na frente, para que, se houvesse visitas, eu não fosse descoberto. No dia seguinte, eu a alimentei com cenouras e maçãs. Eu só queria ter uma boneca. Achei que ela ia chorar, desconsolada. Deve ter chorado, mas não me deixava ver. Ela me pediu um lápis e uma borracha, e, um dia depois, havia desenhado o quarto inteiro. Desenhava pessoas em cenas mórbidas, frias, desconsoladas. Demônios e situações desesperadoras. Um dia, resolveu gritar, mas ninguém a escutava. O quarto era à prova de som. Tentava sair, mas o armário que ficava na frente da porta continha centenas de livros. Ela morava numa prisão mental, que eu criara cuidadosamente. Já aceitara que, se saísse, coisas terríveis aconteceriam. Aceitara que, de qualquer modo, não conseguiria sair. E só se prende uma presa fisicamente enquanto o psicológico dela está sendo trabalhado. Àquele ponto, eu poderia soltá-la no meio da rua, e ela voltaria para mim. Houve um só dia em que resolvi me deitar ao seu lado, mas ela não me quis. Tentei abraçá-la, aquecê-la, e ela me olhava com rancor. Fez carinho na minha cabeça. Sorriu ironicamente. Cravou alguma coisa no meu abdômen e falou:
- Existe uma diferença entre um homem safado e um homem doente.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Último Vôo

Pra mim, já era quase automático, pegar o pára-quedas, prendê-lo no corpo, subir no avião com meus amigos e ser o penúltimo a pular. Lá em cima, enquanto o avião subia, a gente observava a paisagem e contava segredos uns aos outros, caso aquela fosse a última vez que nos víamos. E os pontinhos coloridos se abriam no céu, nem sempre azul, e, aos poucos, ficavam pequenos e sumiam. Naquele dia, não chovia. Era um lindo dia. Poucas nuvens faziam o estilo de borrões e enchiam o céu de nuances azuis. Eu tomei coragem para me confessar:
- Vou pedir a Laila em casamento!
Era minha namorada há 5 meses. Todos gritaram, em aprovação, e eu me soltei no ar.
E o pára-quedas não abriu.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Sobre um Fim

- Desde que Amanda se foi, eu caí. Estou magro, sem vontade de nada. Sem esperança. No fundo do poço.
- Deixe de se lamentar e vá lavar esse cabelo malcheiroso.
- Mas Amanda não vai me cheirar.
- Você não sente seu próprio cheiro? As moscas sentem.
- Bem que você podia parar de fazer piada.
- Bem que você podia se levantar e comer.
- Amanda fazia as melhores macarronadas do mundo.
- Amanda nunca mais vai fazer macarronada pra você, ouviu? Nunca mais. Por enquanto, você precisa imaginar que ela morreu. Tirar as coisas dela de todos os lugares da casa, concentrar tudo em uma caixa e enfiar em um armário até superar. Aí você encara como um término e joga tudo fora.
- Mas eu não sei como vou superar.
- Mas você sabe que, um dia, vai superar. É melhor do que estar dizendo "não vou conseguir". Você sabe que vai, só não sabe como. E nem se deu conta do que falou.
- Eu sinto falta dela.
- Você sempre vai sentir falta dela.
- Então como vou superar?
- Você pode começar tomando um banho.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Homenagem aos Marinheiros





Por favor, cliquem no player acima para escutar a canção Cisne Branco (o hino dos Marinheiros do Brasil) e aguardem alguns segundos para ler o texto enquanto a escutam. Obrigada!

Passamos meses e meses no mar, sem contato com mais ninguém além da tripulação, e aprendemos a amar todo mundo, desde o piloto até o ajudante de copa. Aprendemos a acreditar em deuses e a fazer orações antes de dormir. Aprendemos a saber que horas são só de olhar para o céu e a fazer previsões do tempo de acordo com as ondas do mar.
Aprendemos história, porque quem não sabe de onde veio não sabe pra onde vai. Somos patriotas por natureza, porque trazemos de criação a missão de defender o mar territorial do Brasil.
Olhar para o mar e ver as fragatas que nos pertencem, pegar os livros escolares de nossos filhos e ver fotos de Dom Pedro II com seu uniforme de almirante. Reconhecer de longe qualquer um de nossos 59600 militares. Ouvir Cisne Branco e sentir aquele orgulho sem tamanho. Sentir-se altivo. Saber que nosso lugar nunca será a areia da praia ou a calçada quente, nem um escritório fechado e nem as copas das árvores, nem nenhum outro, senão o oceano.



Homenagem ao dia do Marinheiro.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Rosas Mordiscadas



Ele tinha a sorte de morar na frente de um campo de rosas vermelhas, e tinha a delicadeza de dedicar, todos os dias, uma parcela do seu tempo a elas. Tomava café-com-leite na varanda ao amanhecer. Sempre fora assim, sozinho, mas nunca solitário, graças à companhia das mil e cinquenta flores.
Certo dia, andando por entre as plantas, percebeu algo diferente nelas. Abaixou-se e analisou. Estavam mordiscadas. Quem era a criatura doentia que morderia rosas? Eram dentes humanos, perfeitamente enfileirados. A partir de então, ele passou a fazer a mesma análise, sempre, e, cada vez que o fazia, encontrava mais uma pétala mordida em cada flor.
Resolveu, então, acordar alguns minutos mais cedo, e, em vez de ir tomar café na varanda, simplesmente se esconder e observar.
E foi tempo suficiente para ver a criatura fantasmagórica, toda vestida de branco, andando e mordendo pétala por pétala, uma de cada flor, parecendo dançar, sem nunca esbarrar ou pisar em nenhuma delas. Estranhamente, fazia-o com carinho, de um jeito quase mecânico, como se, em vez de ver as rosas, rastreasse-as.
Ele estava sem fôlego com o que via. Nunca imaginara uma cena tão surreal. Pegou uma rosa em suas mãos e a segurou, como se a oferecesse para a criatura, e esperou que ela mordiscasse cada uma das outras até chegar à última.
Os lábios gelados dela tocaram as mãos quentes e trêmulas dele, e os dois deram um pequeno pulo para trás. Ela levantou a cabeça e o sol nascente permitiu que ele visse seu semblante: humano, mas não vivaz. Ela tinha cabelos da cor das rosas e usava um vestido rendado, branco e longo. Seus olhos eram claros, mas por causa da cegueira. Ela realmente não enxergava as rosas. Como numa obsessão, mordeu rapidamente a rosa da mão do homem, aterrorizado. E correu, dançando, até desaparecer.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Ponto de Vista de um Galeroso

Todo mundo faz parte de algum grupinho na escola. O meu, as pessoas gostam de chamar de "galera". Eles dizem que a gente é violento e propenso a se tornar marginal quando crescer. Tem gente ali que acha que eu sou um animal. E as pessoas colocam nos jornais e na televisão as coisas horríveis que galerosos, como nós, fazemos, e acham que estamos errados, que a vida não precisa ser daquele jeito e que não é porque moramos na periferia da cidade que podemos quebrar a escola, andar com terçado dentro da meia e forçar as meninas a ficarem com a gente. Agora, eu acho que tenho direito de expor meu ponto de vista, porque não parece, mas também sou gente.
Alguém aí já viu galera no Paraviana? No River Park? Não tem, né? Tem, no máximo, aqueles adolescentes que saem de mountain bike por aí pra roubar as pessoas, armados com faca de cozinha da Tramontina. Isso acontece porque nesses bairros, pelo menos 90% das crianças tem um iPad em casa, e pelo menos 70% dos pais dessas crianças ganham mais de 5 mil reais por mês. Esse dinheiro dava pra comprar comida pro pessoal do meu bairro inteiro, por bastante tempo. Minha mãe nem sabe o que é um iPad.
Esses dias, o pessoal da minha escola chamou a polícia pra impedir eu e meu grupo de quebrar os vidros e dar umas facadas numas professoras que iam reprovar a gente. Tem exagero maior? Querer que eu estude e passe de ano, como se já não fosse o suficiente eu ter que ir pra escola porque, segundo a lei, lugar de criança é na escola. Querer que eu estude e dê o melhor de mim sendo que o pessoal do Paraviana só enfia a mão no bolso, tira alguns milhares de reais e já tá na faculdade com um 10 garantido na monografia. Querer que eu queira dar o melhor de mim? Gente que nunca chegou ao ensino médio, como o Lula, tem os mais altos cargos do país, mora nos melhores bairros, come a melhor comida e tem tudo o que é mais caro que a vida tem a oferecer, além do apoio do governo, e, minha mãe, por exemplo, passou a vida dando duro em escola pública, tá aí, limpando a bunda dos filhos dos riquinhos. Ela teve que abrir mão da faculdade porque não ia dar tempo de sustentar a família e estudar.
Tem gente por aí que ganha milhões de reais pra sorrir pra uma câmera e mostrar as pernas durante 30 segundos, e minha mãe ganha um salário mínimo por mês. Essas pessoas fazem pilates, têm personal trainer, moram em prédios chiques e jantam sushi, andam de helicóptero e passam os fins de semana no spa. E eu duvido que elas tenham faculdade. O que elas têm é dinheiro. Dinheiro não compra felicidade, mas compra uma boa parte dela. Felicidade não é só amor - isso é o que o dinheiro não compra -, é saúde, bons médicos, comida garantida na mesa, boas escolas e sete reais pra ir ao cinema de vez em quando. Cinco mil reais por mês dá pra ir ao cinema 667 vezes.
E aí, quando a polícia foi lá impedir a gente de quebrar a escola, quem era que estava praticando justiça? A gente ou a polícia?

Amor de uma noite

Sabe quando tem um cara e você sempre teve uma queda inexplicável por ele? Pois é, eu tinha uma dessas pelo Iago. Não era inexplicável, na verdade; a explicação era bem simples: ele era lindo, educado, inteligente, me entendia e fazia o tipo safadinho e pegador que toda menina acha sexy.
Naquela noite de novembro, eu estava em uma festa de aniversário, e, como sempre, estávamos trocando mensagens. De repente, ele me chamou pra dar uma volta de carro. Eu e o Iago sozinhos em um carro. Claro e óbvio que não seria só uma volta. Aceitei imediatamente.
E quando a porta do carro se abriu, minha noite começou de verdade. Ele me olhava bem fundo nos olhos, nunca vou esquecer. Tinha um olhar confiante e sabia exatamente o que estava fazendo. Me envolveu com muita facilidade. Naquele momento, eu senti amor. Eu o amei profundamente, e me senti amada de volta. As mãos dele percorriam suavemente o meu corpo. O tempo passou rápido demais, e poucos minutos depois, eu estava de volta à festa. Claro que a primeira coisa que eu fiz quando saí do carro, totalmente balançada e trêmula, foi contar pra algumas amigas.
E dormi com o cheiro dele no corpo.
Todo o tempo que passou depois disso foi infinito. Todas as noites, trocando mensagens com ele, eu esperava por aquela que seria um convite a entrar no carro dele de novo. Todas as noites, eu revivia aquele amor que durou apenas uma noite.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Ossos do Ofício

Ouviu os tiros, não reconheceu a direção da qual vinham, mas protegeu-se atrás do primeiro carro que viu e pegou seu revólver. Aquilo era sinal de guerra. Ainda bem que ele estava de colete salva-vidas. Detectou que o movimento vinha da sua frente, à direita, e, ao primeiro sinal de perigo, apertou rudemente o gatilho, quebrando vidros e acionando alarmes dos carros que estavam na rua. Agora precisava correr, porque já deixara-se descobrir.
Foi para trás do próximo carro e se abaixou, procurando a menininha sequestrada. Sua respiração estava descompassada e ele havia recebido uma descarga de adrenalina. Enquanto concentrava-se em encontrar a vítima, percebeu que levaria um tiro e tentou se esquivar, mas a bala passou de raspão e levou um pedacinho de seu sobretudo bege. A cada tiro que dava, ele trocava de lugar, cada vez chegando mais para a frente e mais para a esquerda. Até o momento em que viu o sequestrador, ao seu lado, porém longe, procurando- o e olhando para a frente. A sorte é que ele estava de lado.
Enquanto analisava onde daria o próximo tiro, ele aproximava-se silenciosamente, como um leão prestes a atacar uma presa, sempre se escondendo atrás de carros.
E o sequestrador deparou-se com um revólver .38 encostado em seu pescoço, e palavras seguras e rudes ordenando-lhe que colocasse a arma no chão. Ia tentar reagir, mas simplesmente não valia a pena ir contra Mário Fontes. Retirou-se e deixou-se levar pelos policiais.
A esposa de Mário sempre reclamava dos perigos da profissão que ele escolhera, mas ele sabia que a recompensa viria a seguir: do fundo de seus olhos verdes, a menina de seis anos agradeceu ao detetive por ter salvo sua vida e lhe deu um abraço. Não havia sensação mais gratificante. Era para isso que Mário vivia, ele tinha certeza. E os tiros que eventualmente levaria.. Eram ossos do ofício.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Misteriosa - Parte III (Valquíria)



Por favor, cliquem no player acima para escutar a canção Die Walküre e aguardem alguns segundos para ler o texto enquanto a escutam. Obrigada!


"Os lucros do Teatro Dourado diminuíram em quase 200% desde a saída de Misteriosa" era a manchete do jornal daquele dia. Ela nunca mais aparecera, de fato, e o teatro estava acinzentado. Sobravam lugares. Todos descontaram em mim, não sei por que motivo, mas eu já havia superado aquela fase. Misteriosa parecia ter aparecido como um fantasma, e fora embora tão repentinamente quanto havia chegado, e, enquanto todas as outras pessoas sofriam pela decadência do teatro, eu já aceitara o fato de que ela não voltaria.
Era uma noite de lua minguante e eu resolvi ir a um novo bar. Sentei-me no balcão e pedi uma vodca.
E quando me dei conta, já estava nos braços de alguém. Era embriagante, perfumada, confortável. Tinha uma voz baixa e rouca, e cabelos macios e escuros. Usava roupas claras, leves e folgadas, de modo que escondia os contornos do próprio corpo. Não me lembro como conheci Valquíria, mas a amei no instante em que a vi. E tornei-a minha quando vi o céu inteiro em seus olhos. Fomos para a casa dela, juntos. Um lugar minúsculo, aconchegante, arrumado. Cama de solteiro, lençóis vermelhos, parede branca, abajur alaranjado. Cortinas vermelhas. Armário e piso de madeira marrom. Tapete redondo, laranja, desbotado. Ela me empurrou até a cama, que pareceu incrivelmente grande. Era tão intensa. Deixei-me levar.
E estávamos abraçados, assistindo o sol nascer, lilás, púrpura e alaranjado. Ela cantava intensamente em meu ouvido uma música chamada "Die Walküre", enquanto tamborilava as unhas vermelhas na mesa de cabeceira.
Quando levantei-me para ir embora, ela disse que guardara minhas roupas no armário. Quando o abri, vi uma única peça de roupa: uma capa preta. E a última coisa da qual me lembro são as palavras dela:
- Sabe o que significa "Valquíria"?
- Não.
- "Aquela que escolhe os que vão morrer".

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Misteriosa - Parte II


Ela foi apelidada de Misteriosa, depois daquela noite. E ganhou mais fama, também; além de todos os lugares ocupados, como de costume, o teatro dourado agora tinha multidões à porta, querendo, a todo custo, ver, mais uma vez, a máscara. Mas nunca mais aquilo se repetiu. Misteriosa entrava, se apresentava e saía. E a multidão continuava batendo palmas para o palco vazio, dia após dia.
Em outra dessas noites, ela entrou e entoou uma nova canção. Não era o que estava no setlist, não era o combinado, mas todos ficaram boquiabertos. As portas, lá fora, se abriram, e a multidão entrou e assistiu em pé. A música chamava-se Canção da Despedida, lembrei-me depois. Era uma melodia dolorida, intensa, cheia de pesar. Ela caminhava pelo palco, enquanto cantava, amargamente, e as pessoas choravam. Ouvia-se a música e os soluços.
O fato curioso foi que aquela apresentação durou até o dia amanhecer, ininterruptamente. E, no fim, Misteriosa ficou parada no palco, sentindo as palmas. Esperou-se que ela mostrasse a máscara de novo, mas nada aconteceu. Quando o barulho cessou, ela foi embora. E passou direto, em vez de ir para o camarim, ou para qualquer outro lugar, ela dirigiu-se à saída.
E o teatro silenciou-se durante as 47 noites que se seguiram.

Misteriosa - Parte I



Ela usava uma capa preta, comprida, que ia até o chão e cobria seu corpo todo. Escondia seus contornos. O capuz estava sempre sobre a cabeça abaixada. O teatro dourado vinha abaixo com as óperas que ela cantava. Sempre com a capa, sempre com contornos abstratos, sempre misteriosa. Ela o fez durante anos, e nunca, eu repito, nunca, houve um lugar vazio, sequer, no enorme auditório. E nunca houve uma pessoa, homem ou mulher, que deixasse de derramar lágrimas com a voz que parecia penetrar as almas de todos. Ao final de cada apresentação, em vez de se curvar, ela ia embora. E as pessoas batiam palmas para um palco vazio.
Em uma dessas noites, com o auditório lotado, em um dos breves momentos de silêncio entre as notas, alguém lhe pediu que levantasse a cabeça e tirasse o capuz; ela continuou cantando, como se não houvessem dito nada. E as pessoas choraram, e ela levantava os braços, andava pelo palco, mas ninguém nunca vira nem sequer a cor de sua pele. A surpresa de todos foi quando, ao final da performance, em vez de ir embora, ela se curvou. E, ao levantar, puxou o capuz para que a platéia pudesse ver, de relance, seu rosto.
Alguns levantaram e foram embora, outros levantaram e aplaudiram, mas não sobrou ninguém que estivesse sentado. Todos estavam perplexos com a máscara de porcelana branca da artista e com as mãos, exatamente da cor da máscara, que contrastavam com a capa preta. Era incrível como ela parecia estar perfeitamente preparada para ser misteriosa com ou sem capuz. Às vezes, o mistério é a natureza das pessoas.