sexta-feira, 11 de julho de 2014

Viver durante um genocídio

Quando eu era criança, nos anos 80, meus avós me contavam que houvera uma época em que os tutsis e os hutus viviam em paz, partilhando do mesmo idioma, das mesmas tradições e do mesmo solo. Porém, os colonizadores belgas enxergaram em nosso povo - os tutsis - uma inexistente superioridade. Para eles, nós nos destacávamos por sermos um pouco mais altos, de pele um pouco mais clara, e isso significava que nossos compatriotas hutus eram inferiores tanto física quando intelectualmente.
Quando a Segunda Grande Guerra acabou e os belgas se retiraram de nosso território, já era tarde demais. Eles haviam passado anos fomentando a discórdia entre nossas etnias e a semente da guerra já estava plantada. 
O que aconteceu foi que vi meu povo ser dizimado. Os hutus tomaram o poder, que, desde a independência da Bélgica, nos pertencia, e, se um humano tem direito de ser intolerante perante a outro, então eles fizeram uso desse direito sem escrúpulos. Minhas amigas foram estupradas e seus filhos foram mortos. Os hutus cortavam os pés dos tutsis para que ficassem todos com a mesma estatura. Meus avós fugiram comigo depois que meus pais foram mortos, para um campo de refugiados no Zaire que me lembrava os campos de concentração dos judeus. Foi o fim da linha para meus protetores: me manter segura lhes custou a vida. 
Meus avós não inventaram nada do que me contaram. Foi uma história real, oriunda de quem vivia esses tempos de paz, que eu nem imaginava. Eu já nasci marcada. Nasci tutsi e isso fazia, de mim, superior para os belgas e merecedora da morte para os hutus.
Fui acolhida por um senhor chamado Paul, gerente de um hotel, onde ele escondeu mais de mil tutsis e hutus cujas vidas foram salvas. Quando essa história veio à tona, ele ficou conhecido como o Oskar Schindler de Ruanda. 
Na mesma cidade onde eu estava escondida, todo esse caso foi dado por terminado quando um grupo tutsi chamado Frente Patriótica Ruandesa tomou o poder das mãos dos hutus, com o apoio do exército. 
Mesmo assim, é errônea a ideia de que o Genocídio de Ruanda hoje só existe nos livros. Ele está impregnado em nossas peles, marcado a ferro em nossas almas e de fato ainda acontece nas regiões em que a mídia não se atreve a meter o nariz. 
Os últimos presidentes vêm tomando medidas para amenizar a inimizade, e acredito que ainda vou viver para ver a história que os meus avós me contaram, sobre tutsis e hutus que não estavam um contra o outro, e sim, convivendo em paz com as diferenças quase imperceptíveis. Estou fazendo a minha parte: meu marido é hutu - eu o conheci no hotel do senhor Paul - e nossos três filhos se amam incondicionalmente. Nós os ensinamos nossos dialetos e lhes contamos nossas histórias, e eles assimilaram e a vida segue. É assim que se supera uma marca tão profunda na alma como viver durante um genocídio.

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