quinta-feira, 31 de julho de 2014

O leitor de olhares

Era uma vez um menininho de olhos coloridos e penetrantes que exibiriam nuances diferentes cada vez que fossem examinados. Cresceu com a mania de brincar com os olhos das pessoas, de tentar ler o que estava escrito dentro deles. Dizem que se você souber passar através dos olhos de alguém, estará lendo sua alma. À medida que crescia, desenvolvia mais a habilidade de desvendar pensamentos escondidos nos olhares. O grande problema é que essa ciência é extremamente inexata, uma vez que em uma alma cabem milhões de sentimentos e olhos são pequenos demais para todos eles, conseguindo transmitir apenas alguns por vez. Com isso, alguns sentimentos entram em estado de "latência" e os olhos só refletem impressões imediatas e superficiais. 
Observando o céu, ele teve uma brilhante ideia. Esperou que a primeira estrela cadente passasse e fez o pedido: queria ler olhares. Era um dom muito sério e que nunca havia sido concedido a ninguém antes, e ele foi advertido que nunca poderia condicionar suas ações ao que lesse dentro de outros olhos.
Ler sentimentos é um tanto delicado. Quando se faz isso sem ter um acordo com divindades, é preciso observar a posição das sobrancelhas, a contração dos músculos da face e toda a linguagem corporal em mínimos detalhes. Quando se passa a vida inteira treinando a observação desses detalhes e o acordo é somado à habilidade, é como comprar um avião, apesar de ter asas e saber voar. Se algum olhar cruzasse com o dele, podia ser lido e nenhum sentimento ficava de fora: ele enxergava tudo. Ler as almas dos outros é uma invasão de propriedade ampliada milhões de vezes. 
O dom da leitura de olhares revelou que muita gente no mundo é triste e guarda esse sentimento para si, em vez de buscar um ombro amigo. Que muita gente ama sem se declarar, odeia sem se libertar, sonha sem realizar. O possuidor desse dom tornou-se ótimo ouvinte, rei do cavalheirismo, uma alma solidária, que dedicou-se a tentar melhorar as vidas alheias baseado em tudo o que vira. Tentou juntar casais, ajudar as pessoas a transformarem sonhos em metas, a fazerem amigos e a se expressarem. Mas ele ficava profundamente desapontado em ver que nada disso ia para a frente. Sempre havia uma desculpa que minimizasse o problema que na verdade era a dor máxima de cada um.
Um dia, ele se apaixonou instantaneamente por uma mulher cujo rosto nunca tinha visto: ela passava todos os dias pelo mesmo lugar, mas sempre de costas. Quando a moça se virou e o encarou pela primeira vez, ele esperou a enxurrada de pensamentos, mas nada veio. 
Ela tinha olhos que os dele nunca antes haviam encontrado: suas íris eram escuras como as pupilas, exageradamente homogêneas, mas cortadas por um raio cor de mel. E toda a ciência e toda a magia do mundo não foram suficientes para violar aquela alma intangível.
Apaixonar-se por ela foi um problema: o dom de ler olhares sem esforço o havia transformado em um grande preguiçoso, que não mais se esforçava para decifrar linguagens corporais das pessoas, esperando entendê-las a fundo pelo que via em seus olhos. Condicionara suas ações ao que lia em olhares, e ainda se lembrava de que as divindades o tinham advertido a não fazer isso. O fato é que procurar entender as outras pessoas é o que acentua a humanidade em nós.
E ela demonstrava um raio caramelado de tristeza cada vez que as interpretações dele falhavam. Ele pediu a revogação do acordo e precisou buscar novamente os recursos dentro de si para compreendê-la; quando finalmente conseguiu, enxergou em seus olhos tudo o que tinha passado a vida inteira buscando, alicerçado em seu dom: um sentido para o mundo inteiro. 
Nos raios de mel das íris dela, estava escrito o amor - e mais nada. E mais nada precisava ser lido, no fim das contas.

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