domingo, 19 de maio de 2013

Afogamento

Displicentemente, tira a roupa. O maiô preto fica. A touca, displiscentemente jogada na cabeça. Displiscentemente, atira-se na água. Uma braçada, duas braçadas, três, respira. Uma braçada, duas, três, respira. Uma, duas, três, respira. Vira, volta. Uma, duas, três, respira. Uma, duas, três, respira. Fim. Vinte mergulhos. Tudo de novo. Cada braçada é um problema - cada respiração, uma solução. Braçada, respiração, braçada, respiração.. Uma, duas, três, quatro, cinco.. Seis.. Dez.. Onze.. Dessa vez não houve mais respiração.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Teoria das nuvens gêmeas

Quando a gente nasce e vai crescendo, adquire uma nuvenzinha colorida em cima da cabeça. Uma nuvenzinha invisível a olho nu.
Para os 7 bilhões de pessoas do mundo de hoje, existem 3,5 bilhões de cores diferentes de nuvenzinhas. Isso acontece para que cada nuvenzinha encontre seu par.
O porquê de ser uma nuvem é facilmente encontrado: as nuvens são maleáveis, brandas, delicadamente carregadas pelo vento. Assim, cada nuvem (que já nasce especialmente para uma outra e já conhece a sua localização) espera o vento bater, para ser levada, devagarinho, para o ponto de encontro previamente combinado com a outra.
Quando a gente pensa com cuidado nessa teoria, percebe que ela faz todo o sentido. As nuvens do céu, um dia, foram ou serão de alguém. Elas estão juntas, grudadinhas, combinando pra onde cada uma vai e onde vão se encontrar. Quando decidem, elas estão prontas pra chover.
A teoria das nuvens gêmeas também explica o porquê de tantos relacionamentos que não deram certo; às vezes, nossas nuvens confundem um pouco as cores umas das outras. Nuvens de cores diferentes convivem por um tempo, mas, inevitavelmente, se separam. Nuvens de cores diferentes não podem fazer chover. Só quando a nossa nuvem encontra a nossa nuvem gêmea, a gente fica completo. Até lá, a gente precisa ter paciência e entender que até as nuvens se enganam, e que, mesmo que inconscientemente, existe uma nuvem que nasceu pra gente. E mais dia, menos dia, a gente vai sentir a tempestade do encontro das duas.

domingo, 28 de abril de 2013

É ciência

Às vezes ouço dizer que o mundo está acabando. Parece que está, quando a gente vê pessoas morrendo de fome, terremotos, furacões, guerras, doenças incuráveis e atentados à vida humana.
Só que também tem aquilo que a gente não presta atenção: crianças que nascem, trabalho em equipe para recuperar as catástrofes naturais, novas curas para doenças e gente que passa devagar com o carro nas poças de água para não molhar os pedestres.
O mundo precisa ser equilibrado. Para novas vacinas, precisam existir novas doenças; para as construções, precisam existir terremotos; para a vida, a morte; para as dificuldades, sorrisos.
Para cada erro, existe um novo acerto, e a resposta desse acerto será sempre um novo erro. E assim, sucessivamente. A Terra chacoalha (mesmo que a gente não sinta) porque, assim, tudo volta pro seu devido lugar. Tudo o que deve voltar, volta. É ciência.

sábado, 27 de abril de 2013

O fim que estava no meio

Todas as histórias bonitas que conhecemos têm a mesma estrutura: um começo em que tudo é perfeito, um meio que ameaça a felicidade dos personagens e um fim onde as virtudes vencem os pecados e a força que vem do coração é bem maior do que qualquer mal que possa existir.
Essa é a história de uma história cujo fim estava no meio.
Como todo começo de história, esse também foi uma doçura. Ele estava repleto de sinos em colinas, pássaros no céu, música e lindas rosas.
Porém, quando a felicidade dos personagens foi ameaçada e o mal se mostrou presente na vida, a doçura se foi e as linhas já escritas da história se tornaram insossas.
Os sinos nas colinas pararam de tocar, os pássaros no céu tiveram as asas cortadas, a música silenciou e as rosas murcharam.
Mas eles nunca voltaram ao normal. A história parou de ser escrita e a alegria se transformou em uma amarga sobrevida.
Essa é a história de uma história cujo triste e trágico fim estava no meio.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Escuridão prolongada

Havia o dia, e então, não houve mais. De repente, parou de amanhecer. Cinco, seis, sete da manhã.. E a lua no céu, no mundo todo, a noite toda. A semana toda. O mês todo.
As plantações morreram, as pessoas não conseguiam ficar acordadas, o frio tomou conta da vida. A pecuária declinou. As pessoas tinham medo de sair na rua. Certo dia, como as luzes da rua ficavam acesas sempre, a energia acabou.
O mundo todo recorreu à religião; é o que todos fazem quando todo o resto está perdido. Todas as noites, ouvia-se sussurros de 7 bilhões de pessoas pedindo que, por favor, o dia amanhecesse de novo.
No dia em que finalmente amanheceu, todas as pessoas estavam assistindo e chorando de emoção. Foi como renascer. Desde então, todos os dias, 7 bilhões de pessoas agradecem todos os dias pela luz e o calor da vida e aproveitam tanto a claridade quanto aprendem com a escuridão.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Empurrãozinho

Começou em uma confeitaria muito famosa na França. Um turista alemão estava fotografando o local e uma turista espanhola sorriu para a foto. No dia seguinte, por acaso, os dois se reencontraram lá. No terceiro reencontro, decidiram dar uma chance ao destino. Essa foto se tornou um namoro, que virou um casamento, seis filhos e uma casinha do lado da confeitaria, onde todos os dias os dois comiam um docinho para se lembrar que algumas coisas acontecem por acaso e só precisam de um empurrãozinho da gente.

sábado, 23 de março de 2013

As Três Marias

As Três Marias são o conjunto de estrelas que forma o cinturão do caçador da constelação de Órion.
Isso para quem está na Terra.
Para quem está nas Três Marias, elas são prédios comerciais onde funciona o setor administrativo da seção noroeste da asa sul da zona norte da porção ocidental do universo.
Tudo que existe segue uma ordem que precisa vir de algum lugar e essa é a função das Torres Trigêmeas, as Três Marias. Funciona mais ou menos como na Terra: para eclipsar um astro, é preciso agendar com antecedência: esse tipo de espetáculo requer alto planejamento artístico. Para transporte de estrelas, paga-se uma taxa.
O Departamento de Natalidade e Mortalidade Celestial funciona como uma torre de controle: impede que determinados corpos celestes se choquem e promove o choque de outros. Ele trabalha em associação com o Departamento de Química Criacional, onde as explosões dos choques entre os corpos celestes são analisadas e modificadas para criar ou destruir outros corpos.
Este departamento tem desavenças com o Departamento de Estudos das Invenções Humanas, que, no momento, está criando corpos celestes geneticamente modificados que não entrem na rota de colisão com os planetas.
Ninguém sabe onde fica o Departamento de Criação e nem quem trabalha nele. Sabe-se que as Torres Trigêmeas começaram a partir dele, e todos os planetas também. De vez em quando, a Presidência recebe um memorando de lá. Algum humano andou pelas redondezas em alguma nave espacial maluca dessas da Terra.
O setor de Estudos dos Terráqueos do departamento de Psicologia dos Povos está, no momento, fazendo testes para ver como os humanos se comportariam se soubessem toda a verdade sobre o céu, como eles sempre sonharam.
Cada uma das estrelas de Órion era antes uma cidade; com o passar do tempo elas se desenvolveram tanto que viraram uma constelação, uma megalópole. O mesmo aconteceu com as outras constelações. Cada uma delas tem uma função diferente no universo: a de Andrômeda abriga o setor de Recursos Humanos e a Ursa Maior é a Diretoria.
Toda vez que alguém olha para o céu e consegue enxergar várias estrelas, é porque o chefe do departamento de Visibilidade está de bom humor. Cada uma dessas estrelas abriga populações inteiras, quem diria? Quem diria que as estrelas cadentes são na verdade memorandos?

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

A dieta da felicidade

Era uma vez uma jovem adulta, acima do peso, que adotou a segunda teoria: é preciso morrer, então é melhor morrer comendo o que se gosta. Surpreendentemente, ela emagreceu. Os cientistas, intrigados, pesquisaram durante semanas. Descobriu-se, então, que a dieta mais apropriada para os humanos era comer o que gostavam. A dieta da felicidade.
A dieta da felicidade ocasionou uma crise econômica mundial (porque a quantidade de pessoas que amam chocolate não é exatamente a mesma das que amam jiló).
Todo o conhecimento sobre nutrição foi destruído e tanto os estudiosos quanto os leigos perceberam que o que faz bem de verdade é o que a gente gosta.


(Essa história é ficcional.)

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

A experiência

"Eu estava no corpo de uma mulher que sabia que a hora da morte chegara. Estava sentada, protegendo a barriga, sob a mira de uma faca. Ela entrou certeira, a dor foi excruciante. Mais uma vez. Então, eu percebi que havia alguma outra coisa além da dor das facadas: sofrimento por dois. Eu estava grávida e fui assassinada a facadas."


História real

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Mundar o mundo - parte IV

"Existe uma ação chamada mundismo. A Terra suporta os humanos há tantos anos porque nem sempre fomos assim, tão.. Desenvolvidos. Do jeito que as coisas vão hoje, não se sabe se ela aguenta mais 40, 400 ou 4 bilhões de anos. É esse o meu trabalho: o mundismo é a consciência de que estamos todos no mesmo planeta, essencial para que possamos viver no universo. O lixo precisa ser reciclado, bicicletas precisam ser mais usadas que carros, o dinheiro precisa ser mais bem distribuído e os livros precisam ser mais lidos. Essa é a principal base da nossa doutrina: livros não vão mudar o mundo. Nem mundá-lo. Livros vão causar mudanças e mundanças nas pessoas. E elas serão responsáveis por fazer isso."
Um homem só se forma por completo quando mata todas as charadas da infância que teve. Este dispensou a banda, matriculou-se na faculdade e pichou todas as ruas que pôde, durante o resto da vida, com mensagens sobre a doutrina mundista. Alguns bilhões de anos depois, ele teve uma estátua digital erguida em sua homenagem, na ultramegalópole de São Paulo, e outros jovens seguiam seu exemplo escrevendo nas paredes virtuais a mesma frase: livros não mudam o mundo. Livros mudam pessoas. Pessoas mudam o mundo.