sábado, 3 de maio de 2014
Somos todos penínsulas
Nunca diga que algum ser humano é uma ilha. Segundo o Pequeno Príncipe (que ninguém ousa contestar), é impossível ser feliz sozinho. Mesmo que deixemos de compartilhar certas coisas com os outros, a vida precisa estar alicerçada na comunicação. O corpo humano só se desenvolve dentro de outro corpo humano. Isso faz de nós penínsulas, e não ilhas, ligadas uns aos outros pelos sentimentos. Tudo o que acontece a um semelhante nos atinge - esse é nosso istmo.
sábado, 26 de abril de 2014
Carne, osso e amor
Normalmente, as aulas de filosofia começam a ser ministradas em colégios a partir da 5ª série, 6º ano, do ensino fundamental. Nessa primeira aula, uma professora estava explicando para crianças de 11 anos sobre como somos feitos de carne e osso, sobre como somos perecíveis e frágeis enquanto humanos. Foi contestada.
"Não acredito que sejamos feitos de carne e osso. Não é possível que passemos a vida toda fazendo o bem e plantando o bem para não colher nada no fim. Acredito que sejamos feitos de uma coisa muito mais forte, que nos eternize, que nos enobreça. Acredito que sejamos feitos de carne, osso e amor."
Carne, osso e amor. Realmente, pensou ela. O que mais seríamos?
"Não acredito que sejamos feitos de carne e osso. Não é possível que passemos a vida toda fazendo o bem e plantando o bem para não colher nada no fim. Acredito que sejamos feitos de uma coisa muito mais forte, que nos eternize, que nos enobreça. Acredito que sejamos feitos de carne, osso e amor."
Carne, osso e amor. Realmente, pensou ela. O que mais seríamos?
terça-feira, 31 de dezembro de 2013
A virada de um ano
O ano passara e Elizabeth nem vira. Parecia-lhe que fechara os olhos em janeiro e os abrira em dezembro.
Ela tivera um ano difícil.
Fora despedida. Perdera dois primos em um acidente de carro. Precisara se mudar para um lugar menor porque o novo emprego não tinha um salário tão bom quanto o primeiro.
Quando se está ocupado, o tempo passa rápido. Elizabeth estivera o ano todo ocupada lamentando-se dos acontecimentos ruins de sua vida.
No dia 31, ela entrou no minúsculo banheiro de seu apartamento sozinha com alguns cosméticos.
No dia primeiro, ela saiu do minúsculo banheiro com cosméticos espalhados pelo corpo inteiro. E uma atitude nova. E um ingresso para uma festa com os amigos.
No ano seguinte, Elizabeth fez tudo diferente. Não consultou psicólogos e nem tomou antidepressivos. Foi curada pelo sopro de vida da novidade. Um ano inteiro, com um cronômetro voltando pro zero e começando a contar de novo. É muito difícil encontrar alguma coisa no mundo tão revigorante quanto a virada de um ano.
sexta-feira, 13 de dezembro de 2013
Eva
Explodiu. Uma grande explosão colorida de sorrisos vívidos. No começo, o mundo estava um pouquinho borrado, mas depois, ficou fácil enxergar a dança de pseudos. Pseudônimos, pseudo-saúde, pseudo amigos, tudo ilusório.
Nas sujas ruas da imunda São Paulo, cada rosto empoeirado empoleirado em alguma esquina cheirava a perigo - e isso era bom. Os saltos faziam barulho no cimento das calçadas e chamavam atenção. O enorme cabelo cacheado esvoaçava e tocava de leve em algumas pessoas. O curto vestido deixava claro que se tratava de uma Mulher, com M maiúsculo. O batom vermelho dizia "siga-me", e, francamente, quem resiste a um belo par de olhos castanhos?
Pseudônimo Eva. Saudável por fora, lindas pernas, sorriso branco, seios fartos. Bomba, dentadura, silicone. Os amigos com quem ela andava eram seus clientes. Eles a seguiam até onde quer que ela fosse - qualquer lugar vazio - e tirasse a dentadura para mostrar suas demoníacas presas e se alimentar de seu sangue e dinheiro.
Eva, colorida, sorridente e vivaz, era a prova viva de que as aparências enganam muito.
Nas sujas ruas da imunda São Paulo, cada rosto empoeirado empoleirado em alguma esquina cheirava a perigo - e isso era bom. Os saltos faziam barulho no cimento das calçadas e chamavam atenção. O enorme cabelo cacheado esvoaçava e tocava de leve em algumas pessoas. O curto vestido deixava claro que se tratava de uma Mulher, com M maiúsculo. O batom vermelho dizia "siga-me", e, francamente, quem resiste a um belo par de olhos castanhos?
Pseudônimo Eva. Saudável por fora, lindas pernas, sorriso branco, seios fartos. Bomba, dentadura, silicone. Os amigos com quem ela andava eram seus clientes. Eles a seguiam até onde quer que ela fosse - qualquer lugar vazio - e tirasse a dentadura para mostrar suas demoníacas presas e se alimentar de seu sangue e dinheiro.
Eva, colorida, sorridente e vivaz, era a prova viva de que as aparências enganam muito.
sexta-feira, 29 de novembro de 2013
Corpos vazios - parte II
Certa vez, o gerente da Plano Espiritual, Deus, precisou se ausentar da fábrica durante uns dias. Antes de ir, Ele separou uma alma para cada humano que seria fabricado durante o período de sua ausência.
Os controladores deveriam envelopar as almas e inseri-las nas mães; por não estarem acostumados a lidar com almas envelopadas (que são extremamente teimosas e fujonas), decidiram plantá-las no ventre das mães depois que já tivessem terminado completamente de fabricar os humanos.
O único detalhe foi que eles esqueceram dessa parte.
Envelopes vazios foram depositados em todos os humanos que nasceram nessa época.
O erro passou despercebido, uma vez que almas fujonas podem plantar a si mesmas em qualquer lugar. Passado tempo suficiente para que os bebês sem alma se transformassem em adultos, observou-se, no mundo, uma tendência muito estranha: o extermínio de humanos, cometido e defendido pelos próprios.
O Departamento de Investigação precisou puxar históricos de todas as almas que residiam na Plano Espiritual para descobrir o que acontecera e o porquê. Isso levou seis anos e custou seis milhões de vidas.
Ninguém, nem na Plano Espiritual, nem em algum universo paralelo e muito menos na Terra, tem o poder de devolver vida a corpos mortos - mas o Departamento de Segurança pôs um fim no Holocausto.
Quando o líder desse programa tirou a própria vida - outro trabalho dos controladores - nada saiu de dentro dele para retornar à Plano Espiritual, comprovando ser um corpo desprovido de alma.
As almas das vítimas dessa falha foram recompensadas com novas vidas terrenas, que viveram com paz e saúde. Foi uma forma de pedir desculpas a elas por tanto sofrimento. Além disso, toda vez que retornam à Plano Espiritual, participam ativamente da montagem de novos humanos.
Após esse episódio, a linha de montagem foi aperfeiçoada e trabalhos em conjunto entre a Plano e alguns humanos (com destaque a um brasileiro chamado Francisco, vulgo Chico) trouxeram à tona a existência de almas com consciência e independentes de corpos.
Dizem que a alma endereçada ao menino Adolf foi envelopada e depositada em alguém que viveu na Terra e disseminou o amor durante longos anos, fazendo trabalhos voluntários, junto com corpos que continham as almas das vítimas dos homens de corpos vazios.
Os controladores deveriam envelopar as almas e inseri-las nas mães; por não estarem acostumados a lidar com almas envelopadas (que são extremamente teimosas e fujonas), decidiram plantá-las no ventre das mães depois que já tivessem terminado completamente de fabricar os humanos.
O único detalhe foi que eles esqueceram dessa parte.
Envelopes vazios foram depositados em todos os humanos que nasceram nessa época.
O erro passou despercebido, uma vez que almas fujonas podem plantar a si mesmas em qualquer lugar. Passado tempo suficiente para que os bebês sem alma se transformassem em adultos, observou-se, no mundo, uma tendência muito estranha: o extermínio de humanos, cometido e defendido pelos próprios.
O Departamento de Investigação precisou puxar históricos de todas as almas que residiam na Plano Espiritual para descobrir o que acontecera e o porquê. Isso levou seis anos e custou seis milhões de vidas.
Ninguém, nem na Plano Espiritual, nem em algum universo paralelo e muito menos na Terra, tem o poder de devolver vida a corpos mortos - mas o Departamento de Segurança pôs um fim no Holocausto.
Quando o líder desse programa tirou a própria vida - outro trabalho dos controladores - nada saiu de dentro dele para retornar à Plano Espiritual, comprovando ser um corpo desprovido de alma.
As almas das vítimas dessa falha foram recompensadas com novas vidas terrenas, que viveram com paz e saúde. Foi uma forma de pedir desculpas a elas por tanto sofrimento. Além disso, toda vez que retornam à Plano Espiritual, participam ativamente da montagem de novos humanos.
Após esse episódio, a linha de montagem foi aperfeiçoada e trabalhos em conjunto entre a Plano e alguns humanos (com destaque a um brasileiro chamado Francisco, vulgo Chico) trouxeram à tona a existência de almas com consciência e independentes de corpos.
Dizem que a alma endereçada ao menino Adolf foi envelopada e depositada em alguém que viveu na Terra e disseminou o amor durante longos anos, fazendo trabalhos voluntários, junto com corpos que continham as almas das vítimas dos homens de corpos vazios.
terça-feira, 1 de outubro de 2013
Corpos vazios - parte I
Um modo muito simplificado de compreender o mundo é enxergá-lo como uma linha de produção macroscópica. Para explicar essa teoria, vou admitir 1) que Deus existe e é responsável pela criação do homem e 2) que, antes de existir na Terra, existimos em um plano espiritual. Então:
A Plano Espiritual é a fábrica de humanos que tem um contrato eterno com a Terra. Quando um novo humano é encomendado, envia-se um envelope contendo uma alma do Departamento de Almas (que só pode ser acessado pelo fundador e gerente da fábrica, conhecido como Deus) para o Departamento de Montagem. Lá, controladores trabalham durante nove meses para que o novo humano se desenvolva, de acordo com suas características espirituais, dentro do ventre de quem o encomendou. Terminações nervosas, coração batendo, tudo isso são os controladores trabalhando. A alma é a primeira coisa do processo, inserida na mãe quando o bebê ainda é um microscópico embrião. Ela fica em estado de latência. Quando entra em contato com o ar e o bebê respira o primeiro sopro de vida da Terra, ela acorda e se desliga do canal de contato com a Plano Espiritual. A vida mundana será uma fase de aprendizado para essa alma que não se lembra de nada relacionado ao mundo de onde veio.
domingo, 15 de setembro de 2013
Todos os dias
Ele se lembrava do começo do relacionamento, em uma festa, e de toda a linha do tempo estabelecida durante o ano que se seguiu. Fotos juntos, declarações em público, planos de vida, promessas e os rios de gargalhadas e carinho, ele via tudo claramente. De repente ele se lembrava que ela o olhava com desapontamento, passava dias em silêncio e não o queria mais. Então, alguém o acordava. Ele olhava para o lado e ela estava lá, colega de classe na faculdade, sem saber que ele existia, intangível. Todos os dias, ao vê-la, ele sonhava a mesma coisa.
domingo, 18 de agosto de 2013
Livros-consciência
Houve uma época em que, ao nascer, cada pessoa ganhava um livro em branco. Assim que começasse a tomar as próprias decisões, o livro começava a escrever em si mesmo, e a história que ele continha era a da vida de seu dono, de modo que o final dela sempre seria o momento presente daquela pessoa.
Cada decisão da história de todas as vidas, nessa época, era documentada, e para descobrir tudo sobre a vida e os pensamentos de alguém, bastava ter seu livro em mãos.
Estes livros, infelizmente, tornavam as pessoas muito influenciáveis. Como era possível prever as ações premeditadas de alguém, também era muito fácil saber como persuadi-las. A solução foi transferir seu conteúdo para algum lugar individual.
Assim, as próximas gerações deixaram de ganhar livros e passaram a ganhar consciências. Suas autobiografias agora eram pessoais e intransferíveis, intangíveis, de modo que só seriam compartilhadas com quem elas escolhessem.
Em um futuro distante, cientistas descobriram a historia da origem das consciências e começaram uma busca pelos livros de antigamente.
Os livros-consciência, aparentemente, não tinham sido extintos: tinham sido adaptados para não revelar a identidade de seus donos e, depois, publicados. Cada um dos livros do mundo, então, era uma consciência. Todos os livros publicados seriam consciências de pessoas que não ligariam se fossem lidas e cujas idéias seriam repassadas para outras.
Por isso, se aconselha três coisas para cada humano: ter um filho, plantar uma árvore e.. Escrever um livro. Escrever uma consciência. Ser um livro aberto. O senso comum de todos os humanos se desenvolveu porque todos se fizeram a mesma pergunta quando souberam da historia das consciências: se nossas autobiografias se escrevessem sozinhas, o que estaria publicado nelas hoje?
sábado, 3 de agosto de 2013
Odiava a si mesmo
Era uma besta, de dois metros e dez de altura e duzentos quilos. Ele tinha cicatrizes no corpo todo e a pele áspera e impenetrável. Não podia mais andar na rua porque as pessoas ficavam apavoradas ao ver tamanha aberração. Era um homem extremamente infeliz, por ser tão diferente de todos os outros, tão fora do padrão. Odiava Deus fervorosamente por tê-lo feito passar por essa vida tão medíocre e condenada ao anonimato ou a testes laboratoriais e manchetes sensacionalistas chamando-o de monstro.
Certo dia, encontrou uma moça delicada e pequenininha que, sorridente, dizia que amava homens altos, fortes e com cicatrizes de guerra.
Ao ganhar um beijo dela, ele se transformou em um homem como todos os outros, de estatura, peso e aparência medianos. Sua pele ficou macia e suas cicatrizes sumiram. A moça ficou desiludida com o que ele era e o que passou a ser e o abandonou.
Era um ser humano, de um metro e oitenta e noventa quilos. Ele tinha uma pele suave e macia. Quando andava na rua, as mulheres ficavam encantadas.
Era um homem extremamente infeliz, por ser tão igual a todos os outros, tão dentro do padrão e principalmente por ter perdido o amor de sua vida. Odiava Deus fervorosamente por tê-lo feito passar por essa vida tão medíocre e condenada a ter a aparência que sempre quis e, ainda assim, viver uma vida vazia.
Odiava a si mesmo e às circunstâncias de sua vida, por ter desejado mudar sem perceber que aquela característica que ele odiava era o que o tornava tão especial para alguém.
domingo, 28 de julho de 2013
Sobre o poder das crenças
No Brasil inteiro, é comum amarrar no pulso ou no calcanhar uma fita fininha do Senhor do Bonfim da Bahia e dar três nós, que correspondem a três pedidos. Segundo a sabedoria popular, a fita se arrebenta quando os pedidos se realizarem. Essa história é sobre o poder das crenças.
Era uma vez um casal que se separou jovem, depois de muito lutar pelo relacionamento, por força do destino que os impedia de ficar juntos. Ao ficar sem recursos para trazê-lo de volta, a garota amarrou no pulso uma dessas fitas e desejou três coisas que o trouxessem de volta no futuro. Era a última tentativa.
Eles não mais se viram, não se falaram, não souberam o paradeiro um do outro. Quinze anos se passaram e a fita vermelha ficou suja e puída, mas não se partiu. A garota nunca esqueceu dos pedidos que fez e nem do ex namorado, e não cortou a fita porque a esperança é a última que morre.
Um dia, ela saiu, à noite, e quando chegou em casa a fita tinha caído. Apesar disso, ela continuou determinada a ir atrás dele de qualquer jeito que pudesse. Acreditava que querer significava poder.
No dia seguinte, ela viajou de férias. Ao chegar no aeroporto da cidade aonde ia ficar, encontrou o ex namorado. Eles se abraçaram profundamente, e toda a saudade do mundo já não era mais nada comparada à força do sentimento que os unia.
Dois anos depois, no dia do casamento dos dois, ela pôs o noivo a par da história da fita. O primeiro nó foi o desejo de reencontrá-lo. O segundo, na intenção de que os dois revivessem o antigo amor. O terceiro foi a vontade de viver feliz para sempre, com ele.
A fita foi encontrada no jardim da casa dela e guardada por sua mãe, e, hoje, está emoldurada e pendurada no quarto do quinto filho deles.
Essa é uma história sobre o poder das crenças.
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