quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A Diabólica Comédia

Nasceu loira, de olhos azuis, bochechas rosadas. Sempre foi a primeira da turma. Virou modelo. Cursou medicina, fez mestrado, doutorado, pós-doutorado e ganhava facilmente meio milhão por mês. Casou, teve dois filhos, comprou um cachorro, morou em sete países, aprendeu vários idiomas e gostava de passar férias na Riviera Francesa. Quando atingiu os cinquenta anos, linda, rica e realizada, descobriu que era esquizofrênica e sofria do mal de Alzheimer. Todos os dias, as vozes que escutava em sua cabeça tinham que lembrá-la de quem era. Um dia ela era advogada, mãe de três e viúva, e no dia seguinte, era engenheira, solteira, sem filhos; no outro, era uma empresária divorciada que criava uma filhinha, e assim passava os anos. Perdeu os pais ("Mas meus pais morreram quando eu era bebê!"/ "Santo Deus, minha mãezinha.."/ "Eu tenho certeza de que eles foram assassinados!"). Tentou matar o filho mais velho, acusando-o de servir carne humana no jantar ("Sou médica há 30 anos e você quer que eu acredite que isso é carneiro?"). Decidiu parar de tomar banho porque o chuveiro pingava minhocas ao invés de água. Quebrou todas as louças. Virou viúva de verdade, mas nunca parou de conversar com o marido que sentava na cadeira de balanço da varanda (nem quando a cadeira de balanço não estava mais lá). Um dia, aos oitenta e três anos, decidiu que estava sendo perseguida, encontrou a perseguidora e deu vários tiros nela. No dia seguinte, um dos filhos encontrou um espelho quebrado, uma arma descarregada e a mãe morta no chão.

domingo, 7 de outubro de 2012

Procurado

Era procurado em todos os lugares do mundo. Negro, alto, forte e gatuno, ele assassinava as vítimas a sangue frio e ia embora como se nada tivesse acontecido. Sem rastros. Não pensava em estratégias - essa era a melhor estratégia, em sua opinião. Anos e anos se passavam, e a coleção de casos arquivados cometidos por ele crescia. Como ele se safava de todas as autoridades? Voltando onde elas já tinham procurado. Nesse momento, ele está fumando em cima do gramado onde desovou sua primeira vítima. Era procurado em todos os lugares do mundo, menos no exato lugar onde estava.

domingo, 16 de setembro de 2012

Mãe dos Ventos, Serra do Caju

Lá estava, um dia, Deus, bolado na madruga tarde, deitado em uma rede, em algum lugar do universo que os humanos não conseguem imaginar. Ele tinha frio. Estava cansado do frio. Já tinha criado muitos países frios no mundo, e não gostava do branco da neve. Ele queria cores.
Então, um papel voou até sua rede. Era uma receita de bolo. Seus olhos bateram nas últimas linhas: "assar no forno a 280º durante 40 minutos" e "servir quente". Deus teve uma ideia.

Ingredientes:

Trigo do Oriente Médio
Água quente
Iguanas da América Central
Tamanduás do Belize
Ouro da Suméria
Diamantes a gosto
Arroz da Ásia
Buriti a gosto
10 litros de magma recém-colhido
Vento

Modo de preparo

Massa

Bata a água e o trigo no liquidificador até formar uma massa homogênea. Despeje no local desejado da Terra de Vera Cruz e espalhe uniformemente (cuidado para não formar Pelotas). Acrescente iguanas, arroz, buriti e tamanduás aos poucos. Asse ao forno a 280º durante 30 anos.

Cobertura

Bata o ouro com os diamantes e misture com magma. Acrescente poderes divinos para que o magma e a temperatura do forno se mantenham aquecidos eternamente.

Foi uma receita bem-sucedida. Os campos ficaram dourados, o sol parecia ser mais quente e o vento era incessante. O sol era escaldante, e o céu, sempre azul. As iguanas e cajueiros reinaram nas terras durante muitos anos e o povo que foi colocado naquele local vivia de arroz e buriti. O título da receita, ele adicionou depois de viver tudo isso:

Roraima

Dizem que, se você olhar com calma para o céu, pode ver a rede de Deus balançando enquanto ele se bronzeia.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

O certo

Hoje ensina-se a posição dos planetas e a composição química dos organismos. Ensina-se a deduzir fórmulas para obter valores. "Latim é uma língua extinta", "Plutão é pequeno demais para ser considerado um planeta", "algarismos romanos não são mais usados convencionalmente". Ensina-se o certo: há alguns anos atrás, ensinava-se que a Terra era quadrada, que os outros planetas giravam em torno da Terra e que a democracia era uma forma falha de governo. Ensinava-se o outro certo. E mais alguns anos atrás, ensinava-se a guerra como forma de demarcar limites e que povos com outras culturas eram bárbaros. Já se ensinou que o modo certo de honrar alguém após a morte é a mumificação, e que o nomadismo é a forma certa de viver, e que os homens devem ser caçadores, e as mulheres, colhedoras. Em todas essas épocas, desde o surgimento do homem até os dias de hoje, os ensinamentos são o certo. O certo, que está e sempre esteve em constante mutação.
Hoje, exige-se que as pessoas saibam distinguir o certo do errado. E os métodos usados para determinar o que é certo e o que é errado são palavras e números que a própria humanidade inventou.
Daqui a dez mil anos, ensinar-se-á o certo. "Todos os 1540 planetas da via láctea giram em torno de Plutão, o planeta mais quente do sistema Plutonar", "Inglês é uma língua extinta", "Naquela época, os carros tinham rodas".
Somos uma sociedade estudiosa, aprendendo o certo sem questionar. Temos dentes na boca porque esse é o certo. E se, amanhã, alguém descobrir que o certo de verdade é ter só a gengiva, e que os dentes são uma anomalia da nossa geração? E se alguém descobrir que água é uma substância tóxica? E se todos os estudos sobre química e física forem falhos?
E se ninguém nunca descobrir nada que contradiga o que sabemos hoje, o certo ainda será considerado mutável?

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Mães, Filhos e Quase-Filhos

"Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...) Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (...)"

Este é o Artigo 5º da Constituição Federal. Ela assegura a todos os cidadãos brasileiros o direito de escolha, o livre arbítrio.
O Código Penal Brasileiro aponta o aborto como atentado contra a vida humana, sem direito de defesa por parte da vítima (o feto abortado).
E é aí que eu vejo o conflito.
Uma mulher que tem dentro de si um feto que ela não quer, e que se tornará um ser humano totalmente dependente dela, na minha opinião, deveria ter a opção de escolher se ela quer ou não dar à luz. Só considero assassinato se o coração já estiver batendo, e isso ainda é repensável.
Uma mulher não quer um filho por dois motivos: 1) Ela não tem condições de criá-lo e 2) Ela simplesmente não quer filhos.
Se for o último motivo, duas coisas podem acontecer: 1) A criança vai para adoção e 2) Ela passa a querer o bebê na hora em que o vê, por questões de instinto.
Se uma criança vai para adoção, ela corre o risco de passar o resto da vida nesta casa de caridade e nunca ser adotada. Ela nunca terá amor paterno. Estas crianças tendem a ter sérios distúrbios psicológicos. Uma mãe que tem condições de criar o filho indesejado não aguenta: ela vai beber, se drogar, e, no fim, vai precisar de cuidados da criança, em vez de cuidar dela. E se ela quiser o bebê, quais são as chances de uma mulher que pensou em abortar criar adequadamente este filho? E se ela não tiver condições financeiras/psicológicas de criá-lo? Quantas crianças, daquelas que vão para lares adotivos, são realmente adotadas? Qual é a dignidade que uma mãe pobre, que não teve condições de pagar um aborto, tem em criar um filho com vermes, que mora na rua e vive abaixo da linha da pobreza? Qual é a dignidade que existe na miséria?
O Brasil é este país onde 4,2 milhões de crianças trabalham, 1,1 milhão não vão à escola e 16,27 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza, e a legalização do aborto tem uma grande chance de modificar drasticamente essas estatísticas. Ser mãe não é para qualquer mulher e dar o filho para adoção não vai tirar a maternidade dela. A maternidade é eterna, esteja a mãe com o filho ou não. Na minha opinião, a proibição do aborto fere o livre-arbítrio das mulheres.

O outro gume da faca está aqui.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Dia da Avó

Minha bisavó paterna me contava histórias da viagem de carro do Rio Grande do Sul pra Roraima, nos anos 70, e eu acho que seria capaz de narrar com perfeição esses dezessete dias que nem vivi, se alguém me perguntasse. Ela me servia montanhas de comida no prato e sempre me dava muito chocolate. Ela me alfabetizou e dividimos a paixão por palavras cruzadas.
Minha avó materna é a pessoa que mais me ajuda. Sem ela, haveria situações que eu realmente nunca conseguiria contornar. Ela é bióloga (casa de ferreiro, espeto de pau) e toca piano. Parece rígida, mas, na verdade, é uma manteiga derretida. Nenhuma de nós duas tem senso de direção e, quase sempre, quando saímos juntas, acabamos perdidas.
Minha bisavó materna faleceu quando eu tinha dois anos de idade e a avó paterna faleceu antes que eu a conhecesse, mas tenho certeza que se tivesse convivido com elas veria muitas coisas em comum. Assim como relatei nos parágrafos anteriores.
Bem, tem problemas que os pais não resolvem e situações em que os pais não bastam. É pra isso que servem as avós, aqueles colinhos infinito e cheios de experiência com os quais a gente sempre pode contar.
(Tenho certeza que minha vó não vai ver isso, porque ela só usa o computador pra jogar paciência e fazer pesquisa, mas o que vale é a intenção. Feliz dia da avó!)

sábado, 21 de julho de 2012

Destreza

Tratava-se de uma renomada bailarina clássica, que rodava o mundo em piruetas-promenade; de um virtuoso pianista, que mudava de tom para tom na hora em que quisesse, e de uma fatídica noite em que suas artes se encontraram.
Ela entrou no palco, solitária, de nariz empinado, coque feito e encantos distribuídos.
Ele estava sentado num canto, escondido do público, acariciando com a ponta dos dedos o piano de cauda e contentando-se em moldar a dança dela.
Da ponta das sapatilhas, a bailarina encontrou, atrás do piano, o olhar do músico.
Aquele foi um dia em que o espetáculo não tratava de balé clássico, e muito menos de notas musicais. Sustentando os olhares um do outro, a bailarina girava freneticamente e o pianista tremia os dedos com velocidade pelas infinitas combinações de tecla do piano.
Ao final do espetáculo, a bailarina recebeu uma visita do pianista. Foi tocada por dedos de pianista. Foi complementada por música de pianista. E ela passava as pontas dos pés pelas teclas. Pés de bailarina, mãos de pianista. Porque dois corpos, juntos, têm muito mais destreza do que um só.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Salva-praias

Lá pelos meados da década de 2040, as pessoas perceberam que as marés traziam lixo demais às praias e causavam acidentes demais aos banhistas. O turismo do Rio de Janeiro tornou-se quase inexistente, já que não se podia mais ir à praia, fazendo com que o Brasil e o mundo entrassem em crise econômica e biológica, porque os animais também estavam morrendo com tanta poluição.
Uma mente brilhante inventou os salva-praias, que se tornaram mais importantes do que os salva-vidas. Eram milhares de pessoas que recolhiam, todos os dias, incansavelmente, todo e qualquer lixo humano que fosse trazido pela maré. Era um cargo remunerado pelo governo e que qualquer um que soubesse nadar e enxergasse bem podia exercer.
Logo, as pessoas voltaram às praias e os animais marinhos voltaram a se reproduzir. A economia mundial foi se estabilizando. Os salva-praias continuaram lá, mesmo depois que a maré parou de trazer lixo, para fiscalizar o que os turistas faziam. Elaborou-se uma nova Constituição que incorporou um artigo sobre isso: por lei, cada lixo que qualquer um deixasse na areia da praia equivalia a uma multa de 500 reais (as pessoas só sentem dor no bolso).
Durante essa crise mundial, algumas pessoas achavam que a humanidade nunca se recuperaria, mas estavam erradas. Nos recuperamos por pouco. A partir da década de 2040, os índices de pessoas que praticavam hábitos sustentáveis aumentaram drasticamente para 98%, sem nunca diminuir (em 2099, 100% da população aderiu). A moral da história? A gente só dá valor às coisas quando sabe o quanto nos custaria perdê-las.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Lugar Melhor

Imagine que você pode abrir sua cabeça como se ela fosse uma caixinha, tirar tudo o que é ruim e deixar lá, para só voltar a se preocupar depois. Imagine que você pode encostar em algum lugar e fazer o tempo ficar quietinho e se esquecer de passar.
Bem, eu posso.
Existe um lugar único no mundo, que encontrei há uns meses, onde tudo é possível, e, se não for, não me importa, porque eu poderia passar o resto da vida ali e nunca me incomodar. Não é muito grande, nem muito pequeno; o espaço é o encaixe perfeito para mim, parece ter sido feito sob medida. E tem um cheiro que (nossa senhora!) desafia tudo o que é mundano: cheiro de segurança. O melhor de tudo é que ele reage: me (re)conforta, me esquenta, cuida de mim, me abraça, me enche de beijos e sorri. Um sorriso bem bonito, daqueles de iluminar tudo. Não encontrei ainda lugar melhor do que abraço de namorado!


Hoje faço 8 meses de brodagem com o Vitor.

sábado, 30 de junho de 2012

Dona Silvana




Eu não gosto do Luciano Huck, de jeito nenhum. Mas hoje, assisti ao quadro "Lar, Doce Lar" do programa dele, que estava em visita à família Rodrigues. E isso me fez repensar toda a vida que levo.
Dona Silvana, a matriarca, chorou quando viu o apresentador. As filhas também. Até aí, normal. Mas ele deu uma olhada pela casa e encontrou metas a cumprir, por exemplo "ser mais educada, mais pontual" ou "transformar meu carrinho de açaí num quiosque", e eu, sentada, no bem-bom, reclamando da vida. Dona Silvana contou que perdeu a mãe e foi abandonada pelo marido, catava papelão na rua, e, para se alimentar, pegava as frutas que sobravam no final da feira ("Tenho muita sorte de morar em um país onde sobra muita comida.."). Hoje, a situação melhorou, mas ela cria duas filhas com 300 reais por mês. E as duas vão à escola, uma toca violino, e a outra, violoncelo, e têm noções básicas de inglês. Dona Silvana não tem dinheiro para tratamento dentário, mas tem duas filhas que têm noções básicas de inglês.
Luciano Huck pode ser o que for, mas ele transformou a vida dessas mulheres. Ele reformou a casa onde elas viviam, forneceu tratamentos dentários e oftalmológicos para as três, e agora, elas vivem com um pouco mais de dignidade.
Prometo a quem estiver lendo, e a mim mesma, que vou ajudar as pessoas que são como a família Rodrigues, ou piores. Não mereço o que tenho, e elas não têm o que merecem. Dona Silvana é o tipo de pessoa da qual o Brasil devia se orgulhar.