sábado, 8 de novembro de 2014

Inspiração

Estava sentada havia horas. De olhos vermelhos, cansados
olheiras profundas e acompanhada
por três canecas de café, vazias;
Tentava escrever havia dias.

Não havia texto motivador
que me iluminasse, ou imagem 
pela qual eu me interessasse!
Tudo o que eu havia lido
era enrolação, clichê ou balela,
eram palavras sem sentido.

Inspiração sentou-se ao meu lado
(Ele entrou voando pela janela)!
Sorriu e brincou comigo.
Era um homem, de cabelos encaracolados..
E ele tinha um cheiro macio,
cujos olhos preencheram o vazio
Do qual eu estava cheia!

E agora a noite esperneia!
E ela tem suspiros esparsos...
Inspiração caminha, basta um passo 
E o sangue ferve em minhas veias

Um turbilhão de pensamentos,
Se desenrola e chovem flores
Inspiração era um homem eficaz...
O problema era: quando
As histórias tomavam formas e cores
Ele dormia e eu queria mais

Inspiração suspirava e dizia 
que não!
Eu o chamava e ele estendia os braços
num abraço me puxando para perto
Eu esbravejava em compasso
"Mas você só me inspira se estiver desperto.."
Sem acordo. Ele era inflexível.

Ele me acordava com beijos inesquecíveis.
Pedia perdão por ter de me deixar, com uma voz manhosa..

E as andorinhas em seus cabelos voavam, 
num turbilhão.
O céu da tarde ficava cor-de-rosa:
uma revoada de pássaros de ideias 
me deixando sem nenhuma.

Fazia mais café e juntava as plumas.
Estava flechado, meu coração.
Fingia estar perdida
esperando a visita de Inspiração.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

O leitor de olhares

Era uma vez um menininho de olhos coloridos e penetrantes que exibiriam nuances diferentes cada vez que fossem examinados. Cresceu com a mania de brincar com os olhos das pessoas, de tentar ler o que estava escrito dentro deles. Dizem que se você souber passar através dos olhos de alguém, estará lendo sua alma. À medida que crescia, desenvolvia mais a habilidade de desvendar pensamentos escondidos nos olhares. O grande problema é que essa ciência é extremamente inexata, uma vez que em uma alma cabem milhões de sentimentos e olhos são pequenos demais para todos eles, conseguindo transmitir apenas alguns por vez. Com isso, alguns sentimentos entram em estado de "latência" e os olhos só refletem impressões imediatas e superficiais. 
Observando o céu, ele teve uma brilhante ideia. Esperou que a primeira estrela cadente passasse e fez o pedido: queria ler olhares. Era um dom muito sério e que nunca havia sido concedido a ninguém antes, e ele foi advertido que nunca poderia condicionar suas ações ao que lesse dentro de outros olhos.
Ler sentimentos é um tanto delicado. Quando se faz isso sem ter um acordo com divindades, é preciso observar a posição das sobrancelhas, a contração dos músculos da face e toda a linguagem corporal em mínimos detalhes. Quando se passa a vida inteira treinando a observação desses detalhes e o acordo é somado à habilidade, é como comprar um avião, apesar de ter asas e saber voar. Se algum olhar cruzasse com o dele, podia ser lido e nenhum sentimento ficava de fora: ele enxergava tudo. Ler as almas dos outros é uma invasão de propriedade ampliada milhões de vezes. 
O dom da leitura de olhares revelou que muita gente no mundo é triste e guarda esse sentimento para si, em vez de buscar um ombro amigo. Que muita gente ama sem se declarar, odeia sem se libertar, sonha sem realizar. O possuidor desse dom tornou-se ótimo ouvinte, rei do cavalheirismo, uma alma solidária, que dedicou-se a tentar melhorar as vidas alheias baseado em tudo o que vira. Tentou juntar casais, ajudar as pessoas a transformarem sonhos em metas, a fazerem amigos e a se expressarem. Mas ele ficava profundamente desapontado em ver que nada disso ia para a frente. Sempre havia uma desculpa que minimizasse o problema que na verdade era a dor máxima de cada um.
Um dia, ele se apaixonou instantaneamente por uma mulher cujo rosto nunca tinha visto: ela passava todos os dias pelo mesmo lugar, mas sempre de costas. Quando a moça se virou e o encarou pela primeira vez, ele esperou a enxurrada de pensamentos, mas nada veio. 
Ela tinha olhos que os dele nunca antes haviam encontrado: suas íris eram escuras como as pupilas, exageradamente homogêneas, mas cortadas por um raio cor de mel. E toda a ciência e toda a magia do mundo não foram suficientes para violar aquela alma intangível.
Apaixonar-se por ela foi um problema: o dom de ler olhares sem esforço o havia transformado em um grande preguiçoso, que não mais se esforçava para decifrar linguagens corporais das pessoas, esperando entendê-las a fundo pelo que via em seus olhos. Condicionara suas ações ao que lia em olhares, e ainda se lembrava de que as divindades o tinham advertido a não fazer isso. O fato é que procurar entender as outras pessoas é o que acentua a humanidade em nós.
E ela demonstrava um raio caramelado de tristeza cada vez que as interpretações dele falhavam. Ele pediu a revogação do acordo e precisou buscar novamente os recursos dentro de si para compreendê-la; quando finalmente conseguiu, enxergou em seus olhos tudo o que tinha passado a vida inteira buscando, alicerçado em seu dom: um sentido para o mundo inteiro. 
Nos raios de mel das íris dela, estava escrito o amor - e mais nada. E mais nada precisava ser lido, no fim das contas.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Viver durante um genocídio

Quando eu era criança, nos anos 80, meus avós me contavam que houvera uma época em que os tutsis e os hutus viviam em paz, partilhando do mesmo idioma, das mesmas tradições e do mesmo solo. Porém, os colonizadores belgas enxergaram em nosso povo - os tutsis - uma inexistente superioridade. Para eles, nós nos destacávamos por sermos um pouco mais altos, de pele um pouco mais clara, e isso significava que nossos compatriotas hutus eram inferiores tanto física quando intelectualmente.
Quando a Segunda Grande Guerra acabou e os belgas se retiraram de nosso território, já era tarde demais. Eles haviam passado anos fomentando a discórdia entre nossas etnias e a semente da guerra já estava plantada. 
O que aconteceu foi que vi meu povo ser dizimado. Os hutus tomaram o poder, que, desde a independência da Bélgica, nos pertencia, e, se um humano tem direito de ser intolerante perante a outro, então eles fizeram uso desse direito sem escrúpulos. Minhas amigas foram estupradas e seus filhos foram mortos. Os hutus cortavam os pés dos tutsis para que ficassem todos com a mesma estatura. Meus avós fugiram comigo depois que meus pais foram mortos, para um campo de refugiados no Zaire que me lembrava os campos de concentração dos judeus. Foi o fim da linha para meus protetores: me manter segura lhes custou a vida. 
Meus avós não inventaram nada do que me contaram. Foi uma história real, oriunda de quem vivia esses tempos de paz, que eu nem imaginava. Eu já nasci marcada. Nasci tutsi e isso fazia, de mim, superior para os belgas e merecedora da morte para os hutus.
Fui acolhida por um senhor chamado Paul, gerente de um hotel, onde ele escondeu mais de mil tutsis e hutus cujas vidas foram salvas. Quando essa história veio à tona, ele ficou conhecido como o Oskar Schindler de Ruanda. 
Na mesma cidade onde eu estava escondida, todo esse caso foi dado por terminado quando um grupo tutsi chamado Frente Patriótica Ruandesa tomou o poder das mãos dos hutus, com o apoio do exército. 
Mesmo assim, é errônea a ideia de que o Genocídio de Ruanda hoje só existe nos livros. Ele está impregnado em nossas peles, marcado a ferro em nossas almas e de fato ainda acontece nas regiões em que a mídia não se atreve a meter o nariz. 
Os últimos presidentes vêm tomando medidas para amenizar a inimizade, e acredito que ainda vou viver para ver a história que os meus avós me contaram, sobre tutsis e hutus que não estavam um contra o outro, e sim, convivendo em paz com as diferenças quase imperceptíveis. Estou fazendo a minha parte: meu marido é hutu - eu o conheci no hotel do senhor Paul - e nossos três filhos se amam incondicionalmente. Nós os ensinamos nossos dialetos e lhes contamos nossas histórias, e eles assimilaram e a vida segue. É assim que se supera uma marca tão profunda na alma como viver durante um genocídio.

sábado, 3 de maio de 2014

Somos todos penínsulas

Nunca diga que algum ser humano é uma ilha. Segundo o Pequeno Príncipe (que ninguém ousa contestar), é impossível ser feliz sozinho. Mesmo que deixemos de compartilhar certas coisas com os outros, a vida precisa estar alicerçada na comunicação. O corpo humano só se desenvolve dentro de outro corpo humano. Isso faz de nós penínsulas, e não ilhas, ligadas uns aos outros pelos sentimentos. Tudo o que acontece a um semelhante nos atinge - esse é nosso istmo.

sábado, 26 de abril de 2014

Carne, osso e amor

Normalmente, as aulas de filosofia começam a ser ministradas em colégios a partir da 5ª série, 6º ano, do ensino fundamental. Nessa primeira aula, uma professora estava explicando para crianças de 11 anos sobre como somos feitos de carne e osso, sobre como somos perecíveis e frágeis enquanto humanos. Foi contestada.
"Não acredito que sejamos feitos de carne e osso. Não é possível que passemos a vida toda fazendo o bem e plantando o bem para não colher nada no fim. Acredito que sejamos feitos de uma coisa muito mais forte, que nos eternize, que nos enobreça. Acredito que sejamos feitos de carne, osso e amor."
Carne, osso e amor. Realmente, pensou ela. O que mais seríamos?

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

A virada de um ano

O ano passara e Elizabeth nem vira. Parecia-lhe que fechara os olhos em janeiro e os abrira em dezembro. 
Ela tivera um ano difícil.
Fora despedida. Perdera dois primos em um acidente de carro. Precisara se mudar para um lugar menor porque o novo emprego não tinha um salário tão bom quanto o primeiro. 
Quando se está ocupado, o tempo passa rápido. Elizabeth estivera o ano todo ocupada lamentando-se dos acontecimentos ruins de sua vida.
No dia 31, ela entrou no minúsculo banheiro de seu apartamento sozinha com alguns cosméticos.
No dia primeiro, ela saiu do minúsculo banheiro com cosméticos espalhados pelo corpo inteiro. E uma atitude nova. E um ingresso para uma festa com os amigos.
No ano seguinte, Elizabeth fez tudo diferente. Não consultou psicólogos e nem tomou antidepressivos. Foi curada pelo sopro de vida da novidade. Um ano inteiro, com um cronômetro voltando pro zero e começando a contar de novo. É muito difícil encontrar alguma coisa no mundo tão revigorante quanto a virada de um ano.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Eva

Explodiu. Uma grande explosão colorida de sorrisos vívidos. No começo, o mundo estava um pouquinho borrado, mas depois, ficou fácil enxergar a dança de pseudos. Pseudônimos, pseudo-saúde, pseudo amigos, tudo ilusório.
Nas sujas ruas da imunda São Paulo, cada rosto empoeirado empoleirado em alguma esquina cheirava a perigo - e isso era bom. Os saltos faziam barulho no cimento das calçadas e chamavam atenção. O enorme cabelo cacheado esvoaçava e tocava de leve em algumas pessoas. O curto vestido deixava claro que se tratava de uma Mulher, com M maiúsculo. O batom vermelho dizia "siga-me", e, francamente, quem resiste a um belo par de olhos castanhos?
Pseudônimo Eva. Saudável por fora, lindas pernas, sorriso branco, seios fartos. Bomba, dentadura, silicone. Os amigos com quem ela andava eram seus clientes. Eles a seguiam até onde quer que ela fosse - qualquer lugar vazio - e tirasse a dentadura para mostrar suas demoníacas presas e se alimentar de seu sangue e dinheiro.
Eva, colorida, sorridente e vivaz, era a prova viva de que as aparências enganam muito.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Corpos vazios - parte II

Certa vez, o gerente da Plano Espiritual, Deus, precisou se ausentar da fábrica durante uns dias. Antes de ir, Ele separou uma alma para cada humano que seria fabricado durante o período de sua ausência.
Os controladores deveriam envelopar as almas e inseri-las nas mães; por não estarem acostumados a lidar com almas envelopadas (que são extremamente teimosas e fujonas), decidiram plantá-las no ventre das mães depois que já tivessem terminado completamente de fabricar os humanos.
O único detalhe foi que eles esqueceram dessa parte.
Envelopes vazios foram depositados em todos os humanos que nasceram nessa época.
O erro passou despercebido, uma vez que almas fujonas podem plantar a si mesmas em qualquer lugar. Passado tempo suficiente para que os bebês sem alma se transformassem em adultos, observou-se, no mundo, uma tendência muito estranha: o extermínio de humanos, cometido e defendido pelos próprios.
O Departamento de Investigação precisou puxar históricos de todas as almas que residiam na Plano Espiritual para descobrir o que acontecera e o porquê. Isso levou seis anos e custou seis milhões de vidas.
Ninguém, nem na Plano Espiritual, nem em algum universo paralelo e muito menos na Terra, tem o poder de devolver vida a corpos mortos - mas o Departamento de Segurança pôs um fim no Holocausto.
Quando o líder desse programa tirou a própria vida - outro trabalho dos controladores - nada saiu de dentro dele para retornar à Plano Espiritual, comprovando ser um corpo desprovido de alma.
As almas das vítimas dessa falha foram recompensadas com novas vidas terrenas, que viveram com paz e saúde. Foi uma forma de pedir desculpas a elas por tanto sofrimento. Além disso, toda vez que retornam à Plano Espiritual, participam ativamente da montagem de novos humanos.
Após esse episódio, a linha de montagem foi aperfeiçoada e trabalhos em conjunto entre a Plano e alguns humanos (com destaque a um brasileiro chamado Francisco, vulgo Chico) trouxeram à tona a existência de almas com consciência e independentes de corpos.
Dizem que a alma endereçada ao menino Adolf foi envelopada e depositada em alguém que viveu na Terra e disseminou o amor durante longos anos, fazendo trabalhos voluntários, junto com corpos que continham as almas das vítimas dos homens de corpos vazios.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Corpos vazios - parte I

Um modo muito simplificado de compreender o mundo é enxergá-lo como uma linha de produção macroscópica. Para explicar essa teoria, vou admitir 1) que Deus existe e é responsável pela criação do homem e 2) que, antes de existir na Terra, existimos em um plano espiritual. Então:
A Plano Espiritual é a fábrica de humanos que tem um contrato eterno com a Terra. Quando um novo humano é encomendado, envia-se um envelope contendo uma alma do Departamento de Almas (que só pode ser acessado pelo fundador e gerente da fábrica, conhecido como Deus) para o Departamento de Montagem. Lá, controladores trabalham durante nove meses para que o novo humano se desenvolva, de acordo com suas características espirituais, dentro do ventre de quem o encomendou. Terminações nervosas, coração batendo, tudo isso são os controladores trabalhando. A alma é a primeira coisa do processo, inserida na mãe quando o bebê ainda é um microscópico embrião. Ela fica em estado de latência. Quando entra em contato com o ar e o bebê respira o primeiro sopro de vida da Terra, ela acorda e se desliga do canal de contato com a Plano Espiritual. A vida mundana será uma fase de aprendizado para essa alma que não se lembra de nada relacionado ao mundo de onde veio.

domingo, 15 de setembro de 2013

Todos os dias

Ele se lembrava do começo do relacionamento, em uma festa, e de toda a linha do tempo estabelecida durante o ano que se seguiu. Fotos juntos, declarações em público, planos de vida, promessas e os rios de gargalhadas e carinho, ele via tudo claramente. De repente ele se lembrava que ela o olhava com desapontamento, passava dias em silêncio e não o queria mais. Então, alguém o acordava. Ele olhava para o lado e ela estava lá, colega de classe na faculdade, sem saber que ele existia, intangível. Todos os dias, ao vê-la, ele sonhava a mesma coisa.