Quando se trabalha em uma biblioteca, aprende-se a cochichar tudo. Em meus primeiros meses de trabalho, imaginei que aos longos dos anos ia-se perdendo a voz aos poucos e ao aposentar-nos, a voz teria sumido completamente.
Eu estava guardando livros quando dona Gertrudes cochichou para mim: "mas olha que moço guapo que acabou de entrar". Veja bem, o gosto de dona Gertrudes por homens é duvidoso e varia com a lua, por isso nem me dei o trabalho de olhar. Terminei meu serviço e voltei para o balcão. O tal moço ainda andava por lá escolhendo livros. Dona Gertrudes tinha razão.
O moço guapo era alto, uma tez morena, cabelos negros, uma tatuagem no braço direito escondida pela camisa xadrez, tinha barba por fazer e olheiras que pareciam velhas amigas dele. Olhei no livro de registro tentando adivinhar qual era o seu nome. Melhor deixar pra lá. O moço guapo não era pra mim.
Aquela talvez tenha sido a tarde em que mais guardei livros. Devo ter posto em dia o serviço atrasado de 4 meses.
Ocupo-me ao máximo para não fixar minha atenção em desconhecidos que me fascinam. Foi assim que só lembrei do moço guapo quando cheguei em casa.
Os dias correram normalmente e algumas vezes o moço guapo aparecia por lá. Ele tinha um gosto variado na leitura. Havia o tempo intenso de Edgar A. Poe, ou Balzac, ou Octaviano Paz, Chico Buarque, Frederico Garcia Lorca e tantos outros que eu invejava seu tempo livre pra ler todos aqueles livros.
Algumas vezes o prefeito usava o auditório ao lado para coquetéis e erámos sempre convidadas. A primeira pessoa que eu cumprimentava era o garçom. Um bom camarada. E para minha surpresa, o garçom dessa vez era o moço guapo. Não o reconheci, então comecei minha conversa de praxe:
- Oi, amigo. Vai uma ajuda aí?
Ele sorriu e disse:
- Além de bibliotecária, fazes bico de garçonete?
Quase solto o codinome que eu e Gertrudes usavamos pra falar dele na hora do almoço. Pensei em mil planos de fuga, tive plena certeza que estava parecendo um pimentão vermelho e minhas mãos começaram a suar. Quando dei por mim ele estava estentendo um avental pra mim.
Se existir uma Sociedade das Garçonetes Unidas, com certeza elas irão odiar até a minha vigésima geração. Devo ter sido a pior garçonete de todos os tempos. ♦
Mas nada disso importa, porque, no fim da noite, ele me deu uma flor - um cravo - e um beijo na testa, e aquilo valeu por tudo. O moço guapo tinha um perfume que o deixava simplesmente irresistível.
Ele continuou voltando, de tempos em tempos, e os dias continuaram correndo, mas, dessa vez, muito mais devagar. Eu passei a me arrumar como uma dondoca, na intenção de que ele me notasse.
E, como quem espera, sempre alcança, ele encostou no balcão para levar um Octaviano Paz para casa, e disse que eu estava muito bonita. Essas palavras foram seguidas de um silêncio incômodo, em que ele aproveitou para me notar mais um pouco. E eu corei. Ele sorriu e foi embora.
O tempo passava, assim, ele me notava de vez em quando, levava uns livros, trazia outros, doava alguns. Tudo em relação a ele era meio abstrato - menos seus músculos.
Um dia, em vez dos escritores que costumava levar, veio dizer que ia levar um Caio Fernando Abreu. E que, a propósito, eu estava especialmente linda. Estonteante. Corei instantaneamente. Anotei o livro e ele foi embora. Naquele mesmo dia, eu resolvi chegar mais tarde em casa e passar numa cafeteria, antes, para tomar um expresso.
Reclusa, com um livro na mão, eu me esquecia do resto do mundo. E nada mais existia. Como diria Clarice Lispector, eu não era mais uma menina com um livro, e sim, uma mulher com seu amante. Nem percebi quando a cadeira branca ao meu lado foi puxada e o moço guapo se sentou. Ao meu lado. E, de novo, eu estava parecendo um pimentão vermelho e minhas mãos suavam, enquanto eu procurava, na minha mente, desculpas para levantar e ir embora.
- Não precisa ficar com vergonha, eu só quero compartilhar o momento do café.
Eu sorri e a conversa fluiu por causa da segurança que ele me passou. Olhava nos meus olhos. E, no final, fui proibida de pagar a conta. E ele pediu para me levar em casa. Andamos juntos, e, quando parei e disse "é aqui", ele ficou perplexo.
- Você mora aqui?
- Moro.. Por que?
- É que.. Eu moro aqui também!
- Ótimo, subimos juntos - A essa altura, eu estava completamente relaxada e sem medo de arriscar umas indiretas - A propósito, como é o seu nome?
E, antes de me beijar, ele parafraseou Caio Fernando:
- Meu nome é Lucas Lourenço. Moro no segundo andar, mas nunca encontrei você na escada..
Essa é uma crônica compartilhada com a Ágda Santos. Ela escreve até a parte que tem o símbolo ♦ e o final é meu.
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